Danilo Dara
“Canto de negro dói, canto de negro mata / canto de negro faz bem e faz mal / negro é como couro de tambor / quanto mais quente, mais toca / quanto mais velho, mais zuada faz!” O palco era Recife-PE, 1908. No dia 24 de julho nascia Solano Trindade. No bairro de São José o sapateiro Manuel Abílio, seu pai, dançava pastoril e bumba-meu-boi com vizinhos. Solano os acompanhava e “aprendia na fonte”. Sua mãe, Emerenciana (ou dona Merença), quituteira e operária, pedia que seu filho lesse para ela novelas, literatura de cordel e poesia romântica. Ali o menino pegava gosto tanto pela palavra cantada quanto pela leitura e escrita, bagagens para o seu futuro caminhar mundo adentro.
Segundo sua filha e herdeira artística, Raquel Kambinda Trindade, a vida retirante de Solano fora marcada por três cidades fortes: Recife na infância; Duque de Caxias-RJ na mocidade; e Embu (das Artes)-SP na maturidade. Pois é justamente esta última que tem sido palco nas últimas semanas das maiores celebrações do centenário de Solano, numa série de eventos iniciada há um ano (noticiada pelo Brasil de Fato). Chegando enfim o aniversário, agora é momento de falar um pouco mais da biografia do grande poeta negro.
Solano - cujo nome, segundo o outro poeta Sérgio Vaz, "vem do latim e significa 'vento do levante', mas há quem interprete como 'vento forte da África'” -, estudou na escola até o equivalente ao 2º grau, e cursou um ano de desenho no Liceu de Artes do Recife. Sua formação desenvolveu-se mais e melhor fora das instituições, nas andanças (coletivas) pelo país, sempre acompanhado por muitos irmãos-artistas. Além da paixão pela poesia cantada e escrita, foi pintor, teatrólogo, cineasta, ator e folclorista. Sua trajetória como poeta-militante iniciou-se, de fato, a partir de 1930, quando começou a compor poemas e ajudou a organizar, em 1934, os I e II Congressos Afro-Brasileiro, respectivamente no Recife e em Salvador-BA. Em 1936 participou da fundação da Frente Negra Pernambucana e do Centro de Cultura Afro-brasileiro, com o objetivo de divulgar os intelectuais e artistas negros. Nunca deixaria o movimento negro, o qual foi fundamental na sua formação como artista e ativista, e pelo qual é até hoje reverenciado.
No ano de 1940 transferiu-se para Belo Horizonte, onde ficou pouco tempo, pois logo depois iria para o Rio Grande do Sul, fixando-se por um curto período na cidade de Pelotas, onde fundou com o poeta Balduíno de Oliveira um grupo de arte popular. Esta foi sua primeira tentativa de criar um “teatro do povo”, o que não se consolidou devido a uma enchente em 1941 que carregaria todo seu material. Incansável, voltou então para Recife, indo logo depois para Duque de Caxias-RJ, onde passaria a organizar festas populares intermináveis e estaria sempre próximo a então capital federal, Rio de Janeiro. Lá conheceu e passou a freqüentar o Café Vermelhinho, onde articulava ações com jovens poetas, intelectuais, artistas de teatro, militantes e jornalistas. Sempre com sua pasta de poesias e outros textos debaixo do braço... No Rio, também filiou-se ao Partido Comunista (movido por palavras bíblicas!), e as reuniões da célula Tiradentes ocorriam na sua casa de fundos.
Casado durante muitos anos com Margarida Trindade, Solano teve com ela quatro filhos de sangue: a primogênita Raquel, Godiva, Liberto e Francisco Solano, formando uma família marcada pela arte, o amor e a persistência libertadora. Exemplo disso fora o episódio de sua prisão, em dezembro de 1944, logo após assinar o “manifesto Mangabeira” e publicar Poemas de uma vida simples - onde se encontra o seu conhecido poema “Trem sujo da Leopoldina“. Durante a perseguição aos comunistas a polícia entrou na sua casa e, apesar de Liberto estar doente e de cama, reviraram o barraco e os colchões à procura de armas. Exemplares de seus livros foram apreendidos. Então Raquel e a mãe, Margarida, percorreram inúmeras cadeias da cidade até encontrá-lo. “Quando sai, Solano parece fortalecido. Embora tenha olhos tristonhos, seu otimismo é contagiante”, remonta o historiador Márcio Barbosa. Saiu da prisão mais determinado a dar continuidade à luta em todos os cantos de sua andança.
Com Abdias do Nascimento (idealizador do Teatro Experimental do Negro), entre outros, fundaram em 1945 o Comitê Democrático Afro-brasileiro, importante experiência para a história do movimento negro, que resgatava criticamente a diáspora africana e valorizava a cultura afro. No Rio de Janeiro também deu início, junto à esposa Margarida e ao sociólogo Edson Carneiro, ao Teatro Popular Brasileiro, sempre buscando conciliar uma pesquisa histórica e cultural bastante séria com a tradução para uma arte verdadeiramente acessível a todos. Dizia Solano: “apesar de tudo que tenho ouvido e lido sobre poesia, resultado das teses e debates nos congressos de poetas e críticos, não me sinto disposto a mudar de linha, de sair do caminho popular de minha poética. Sem querer discutir o valor dos herméticos ‘concretistas’, ‘dadaístas’ etc (eruditos donos da cultura ocidental), prefiro levar ao meu povo uma mensagem, em linguagem simples, em vez de uma mensagem cifrada para um grupo de intelectuais”.
O TPB passou a viajar pelo Brasil divulgando seu trabalho, e seguiu desenvolvendo uma intensa atividade cultural voltada ao resgate das historicamente renegadas raízes afro-nordestinas, além da denúncia do racismo e de outras formas de opressão. Em 1955 chegou a viajar com o TPB para a Polônia e Tchecoslováquia - então comunistas -, onde se apresentaram para multidões. No fim da década, Solano publicou Seis tempos de poesia (1958) e Cantares ao meu povo (1961; reunião de poemas anteriores). Em Praga, o poeta ainda realizara o documentário Brasil Dança. E, como ator, trabalhou nos filmes Agulha no Palheiro, Mistérios da Ilha de Vênus, Santo Milagroso além de, como co-produtor, em Magia Verde.
Depois de visitas constantes, em 1961 já estava morando em São Paulo, quando numa apresentação teve a oportunidade de conhecer o escultor Assis, antigo morador de Embu, que o convidou para conhecer sua cidade, na periferia da região metropolitana. Solano se encantou pelo lugar e o adotou, junto à família e à boa parte do elenco do TPB. Somaram-se a outros guerreiros (como Assis, Sakai, Azteca e Cássio M’boi), transformando a cidade num pólo de cultura e resistência. Poucos anos depois, no entanto, a morte violenta de seu filho Francisco - ao que tudo indica assassinado pela ditadura entre 1964-65 – abalou demais a família, levando-a inclusive a "não querer remexer a história". É nesse período também que Solano chateia-se com o que chamava de “picaretas” e a crescente comercialização na cidade recém-adotada, passando um tempo fora por outros bairros da periferia de São Paulo. Voltaria ao Embu apenas dois anos depois.
Porém, no final da década, em 1969, quando os rumos do país também iam de mal a pior, Solano adoeceu mais gravemente. Depois de passar por várias clínicas e muitas dificuldades (dentre elas um grande assalto, quando perdeu boa parte de suas posses; além da tristeza em razão da morte de sua amada baiana, Lycia, em 1970), acabou sendo cuidado pela filha Raquel e o amigo escultor Vicente de Paulo. Com parte da família no Rio, Solano também foi para lá, onde faleceu numa clínica em Santa Tereza, dia 19 de fevereiro de 1974.
Sua história segue: em 1975, Raquel Trindade lidera a formação do Teatro Popular Solano Trindade, dando continuidade ao núcleo cultural criado e enraizado no Embu pelo pai. Junto com sua família, de sangue e coração, que continua criando e lutando por lá, são exemplos como que escritos por brasas na pele escura de todo negro, de todo oprimido independente de sua cor. Ao completar seu primeiro centenário de vida, familiares, amigos e outros inspirados no poeta seguem a prestar homenagens e a celebrar o mestre pelo Embu e a periferia do mundo afora. Solano hoje dá nome a muitas bibliotecas populares no Brasil, e acaba de ser presenteado com uma nova antologia (Poemas antológicos de Solano Trindade – apresentação de Zenir Campos Reis e ilustrações de Raquel Trindade, Ed. Nova Alexandria). As mulheres e os "homens simples", como gostava de se auto-denominar, agradecem!
Canto dos Palmares
Solano Trindade (1961)
Eu canto aos Palmares
sem inveja de Virgílio, de Homero e de Camões
porque o meu canto é o grito de uma raça
em plena luta pela liberdade!
Há batidos fortes
de bombos e atabaques em pleno sol
Há gemidos nas palmeiras
soprados pelos ventos
Há gritos nas selvas
invadidas pelos fugitivos...
Eu canto aos Palmares
odiando opressores
de todos os povos
de todas as raças
de mão fechada
contra todas as tiranias!
Fecham minha boca
mas deixam abertos os meus olhos
Maltratam meu corpo
minha consciência se purifica
Eu fujo das mãos do maldito senhor!
Meu poema libertador
é cantado por todos, até pelo rio.
Meus irmãos que morreram
muitos filhos deixaram
e todos sabem plantar e manejar arcos
Muitas amadas morreram
mas muitas ficaram vivas,
dispostas a amar
seus ventres crescem e nascem novos seres.
O opressor convoca novas forças
vem de novo ao meu acampamento...
Nova luta.
As palmeiras ficam cheias de flechas,
os rios cheios de sangue,
matam meus irmãos,
matam minhas amadas,
devastam os meus campos,
roubam as nossas reservas;
tudo isto para salvar a civilização e a fé...
Nosso sono é tranqüilo
mas o opressor não dorme,
seu sadismo se multiplica,
o escravagismo é o seu sonho
os inconscientes entram para seu exército...
Nossas plantações estão floridas,
Nossas crianças brincam à luz da lua,
nossos homens batem tambores,
canções pacíficas,
e as mulheres dançam essa música...
O opressor se dirige aos nossos campos,
seus soldados cantam marchas de sangue.
O opressor prepara outra investida,
confabula com ricos e senhores,
e marcha mais forte,
para o meu acampamento!
Mas eu os faço correr...
Ainda sou poeta
meu poema levanta os meus irmãos.
Minhas amadas se preparam para a luta,
os tambores não são mais pacíficos,
até as palmeiras têm amor à liberdade...
Os civilizados têm armas e dinheiro,
mas eu os faço correr...
Meu poema é para os meus irmãos mortos.
Minhas amadas cantam comigo,
enquanto os homens vigiam a terra.
O tempo passa
sem número e calendário,
o opressor volta com outros inconscientes,
com armas e dinheiro,
mas eu os faço correr...
Meu poema libertador é cantado por todos
até pelas crianças e pelo rio.
Meu poema é simples,
como a própria vida.
Nascem flores nas covas de meus mortos
e as mulheres se enfeitam com elas
e fazem perfume com sua essência...
Meus canaviais ficam bonitos,
meus irmãos fazem mel,
minhas amadas fazem doce,
e as crianças lambuzam os seus rostos
e seus vestidos feitos de tecidos de algodão
tirados dos algodoais que nós plantamos.
Não queremos o ouro porque temos a vida!
E o tempo passa, sem número e calendário...
O opressor quer o corpo liberto,
mente ao mundo
e parte para prender-me novamente...
- É preciso salvar a civilização,
Diz o sádico opressor...
Eu ainda sou poeta e canto nas selvas
a grandeza da civilização - a Liberdade!
Minhas amadas cantam comigo,
meus irmãos batem com as mãos,
acompanhando o ritmo da minha voz....
- É preciso salvar a fé,
Diz o tratante opressor...
Eu ainda sou poeta e canto nas matas
a grandeza da fé - a Liberdade...
Minhas amadas cantam comigo,
meus irmãos batem com as mãos,
acompanhando o ritmo da minha voz....
Saravá! Saravá!
repete-se o canto do livramento,
já ninguém segura os meus braços...
Agora sou poeta,
meus irmãos vêm comigo,
eu trabalho, eu planto, eu construo
meus irmãos vêm ter comigo...
Minhas amadas me cercam,
sinto o cheiro do seu corpo,
e cantos místicos sublimam meu espírito!
Minhas amadas dançam,
despertando o desejo em meus irmãos,
somos todos libertos, podemos amar!
Entre as palmeiras nascem
os frutos do amor dos meus irmãos,
nos alimentamos do fruto da terra,
nenhum homem explora outro homem...
E agora ouvimos um grito de guerra,
ao longe divisamos as tochas acesas,
é a civilização sanguinária que se aproxima.
Mas não mataram meu poema.
Mais forte que todas as forças é a Liberdade...
O opressor não pôde fechar minha boca,
nem maltratar meu corpo,
meu poema é cantado através dos séculos,
minha musa esclarece as consciências,
Zumbi foi redimido...
quarta-feira, 6 de agosto de 2008
A persistência do racismo e da luta anti-racista
Danilo Dara
Dois atos públicos contra o racismo, a discriminação racial e o assassinato de jovens negros por militares.
1º ato: 7 de julho de 1978, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. Milhares de pessoas desafiavam a ditadura para protestar pela morte de Robson Silveira da Luz nas dependências do 44° DP, resultado de torturas praticadas por militares e pelas péssimas condições carcerárias no Brasil. E denunciar a discriminação sofrida por quatro garotos negros do Clube Tietê, proibidos de utilizar a piscina. Lá estava sendo criado o Movimento Negro Unificado (MNU).
2º ato: 7 de julho de 2008, nas mesmas escadarias de um país supostamente redemocratizado, com 20 anos da “Constituição Cidadã”. Um repúdio à tortura seguida do assassinato de três jovens negros entregues a traficantes pelo Exército, no morro da Providência (RJ); a novas agressões de skinheads contra rapaz negro em SP; à crescente perseguição, em todo Brasil, de templos e praticantes das religiões de Matriz Africana, depredados e agredidos por setores evangélicos reacionários; à campanha contra as cotas para negros, articulada por setores elitistas e pela grande mídia contrária a qualquer reparação; enfim, um repúdio também aos freqüentes ataques de grileiros, especuladores e empresas trans e nacionais às conquistas de direitos por quilombolas.
Hoje e aqui, a despeito de saltar aos olhos que muito pouco mudou na vida de negras e negros no Brasil, ao menos um motivo para realmente comemorar: a persistência radical de 30 anos do MNU. (DD)
30 anos de Movimento Negro Unificado (MNU)
Reginaldo Bispo
No rol das muitas comemorações de datas históricas em 2008, destacam-se os 200 anos da chegada da família real no Brasil em março; os 120 anos da abolição da escravatura, em maio; e um fato histórico contemporâneo: os 30 anos da criação do MNU, dia 07 de julho.
Se a chegada da família real marca a fundação do estado brasileiro e a introdução aqui dos elementos da cultura clássica européia: o luxo, a ostentação, além de outros valores pouco recomendáveis, como o acirramento da exploração escravista. O processo da abolição não se deveu à boa vontade da família, de D. João, dos Pedros I e II, tampouco de Dna. Isabel. Ao contrário, a família real foi a responsável por seu atraso, pois, além de proprietários, financiavam o comércio escravista, fazendo do Brasil o último país a abolir a escravidão.
A lei sexagenária liberou os proprietários de arcar com os custos de assistir ao negro que conseguisse sobreviver aos mal-tratos e à fúria animalesca dos proprietários. Um negro que sobrevivesse à violência desse tratamento, após os 60, era incapaz de sobreviver por meios próprios. Era libertado, pois, para morrer à míngua, liberando o patrão do ônus.
A lei do ventre-livre de 1871, outra farsa, colocava sob a tutela do estado a criança nascida livre, a qual ou permanecia sob o mando do escravista, proprietário da mãe, que a explorava até os 18 anos.
A “Abolição”, de 13 de maio de 1888, foi resultado de pressões internacionais - principalmente da Inglaterra, para escoar o excedente da sua produção industrial -, e das revoltas populares e negras que pipocavam no território brasileiro, as quais após a guerra do Paraguai e a vitória dos negros contra os escravocratas franceses no Haiti, tornaram-se um pesadelo para as elites escravistas de nossa terra.
Nestes 120 anos, pouco mudou nas relações sócio-econômico-culturais no Brasil. Os grilhões foram substituídos por um instrumento ideológico muito mais eficiente: o Racismo! Através de mecanismos econômicos, culturais, institucionais e legais, impõem os espaços que são permitidos aos negros, preservando os melhores para os brancos. Os castigos corporais foram substituídos por perseguição, prisões e a eliminação física de jovens negros por órgãos de segurança dos governos e da polícia em todo o país.
O racismo segregou os espaços de moradia, educação, consumo, através da monopolização dos melhores trabalhos e salários pelos euro-descendentes. Na sociedade, na política, o prestígio e os privilégios advêm da capacidade individual ou coletiva de possuir algum poder econômico, ou ter padrinhos, o que não foi permitido aos negros nestes 120 anos.
O MNU surgiu em 7 de julho de 1978, com ato público em frente ao Teatro Municipal de SP, em protesto contra manifestações de racismo: o assassinato de Robson Silveira da Luz, por policiais, dentro do DP de Guaianazes - Capital, e a segregação de atletas negros do Clube de Regatas Tietê, também em São Paulo, por diretores que os impediam de entrar na piscina do clube.
O 7 de julho foi um marco e dia de Glória para os negros de SP e do Brasil: em plena ditadura, milhares de negros desafiam a repressão e vão para a praça pública gritar em uníssono o que estava engasgado na garganta de todo um povo, desde a ilegalidade da Frente Negra em 1937, pelo estado novo; e do golpe militar que calou o Teatro Experimental do Negro, de Abdias do Nascimento, em 1964: “Não toleraremos mais o racismo e os racistas! De agora em diante os racistas não dormirão mais em paz! Estaremos organizados e vigilantes na luta contra o racismo!”
E assim tem sido, nestes 30 anos. Novas organizações surgiram, avanços e conquistas ocorreram, mas praticamente todos beberam e se inspiraram nos Programas de Ação do MNU, nas bandeiras e nas lutas travadas por nós. O MNU esteve em lutas e manifestações contra o regime de apartheid da África do Sul, pela derrubada da ditadura e eleições livres no Brasil, no Fora Collor, na Construção da CUT, na Constituinte - emplacando o reconhecimento das terras quilombolas, inclusão da história do negro nos currículos escolares, e o racismo como crime inafiançável. O MNU foi tema de artigos, teses e livros. E perseguido pela repressão e governos ditos “democráticos”, com detenções (é o caso de Neninho do Obaluaiê que, por sua militância, mofou 14 anos em penitenciária de SP); com demissões de militantes sindicais (como Milton Barbosa, do Metrô-SP e Reginaldo Bispo, da Unicamp) por governos do PSDB/PMDB.
Colecionamos nossos mártires: lutadores foram perseguidos, presos ou mortos pela polícia e grupos de extermínio. Militantes do MNU, em Salvador, vêm recebendo ameaças de morte devido à campanha “Reaja ou será mort@!”, articulada pelo movimento junto a outras entidades negras. A recente acusação de um alto funcionário da Sec. de Segurança, de que o MNU “seria uma organização criminosa” pela campanha que faz contra a matança de jovens negros e por melhores condições aos encarcerados nas prisões públicas da Bahia - que mais lembram navios negreiros (pela maioria de negros e pelas condições fétidas e anti-humanas) -, nos dão uma idéia de como os carlistas ainda comandam o governo da BA. Será responsabilidade do governo petista de Jaques Wagner se algo vier a ocorrer com aqueles irmãos e irmãs.
Este ano é especial: muitas manifestações serão realizadas em todo o país. Ao reavivarmos esta história, renovamos nosso compromisso e disposição para seguir lutando, de forma independente, contra o racismo, em defesa de um Brasil melhor, onde negros e negras exerçam seus direitos inalienáveis de liberdade e cidadania, conscientes e organizados, construindo o CONNEB (Congresso Nacional de Negras e Negros do Brasil) e o Projeto Político do Povo Negro para o Brasil, inclusivo e justo, onde os 50% da população, nós e nossas futuras gerações ocupemos os espaços que nos pertencem de direito. Longa vida ao MNU!
Reginaldo Bispo é Coordenador Estadual do MNU-SP.
Os 7 pecados Capitais – na Segurança Pública da BA
Hamilton Borges Walê
Mais um jovem com sonhos e um belo futuro abatido em Salvador. Dessa vez na comunidade de São Cristóvão, conhecida como Planeta dos Macacos não por acaso, mas pelo seu contingente populacional negro. Os negros são mortos como insetos e a cada feriado ou final de semana as estatísticas parecem que nos desafiam a alguma ação. Parece que são os números que nos cobram.Temos tabulado tantos corpos que já perdemos as contas.
A mãe de Diego de Jesus Sampaio, 17 anos, nos recebeu em sua casa. Reuniu as forças que podia e nos pediu justiça, para que lutemos, para que outra mãe não chore como ela. Atravessamos a cidade em meio a uma chuva torrencial, pouco preocupados com a epidemia de dengue que nos ameaça tanto quanto a violência, saltamos os buracos e os esgotos a céu aberto, tínhamos que cumprir uma missão quase inútil dada a gravidade dessa outra epidemia que nos assola com farda de polícia e distintivo oficial. Oferecemo-nos para repercutir, denunciar, gritar e articular uma reação pela cidade.
Diego foi morto covardemente, depois de uma sessão de tortura. Foi alvejado várias vezes. O corpo foi conduzido por seu algoz até uma guarnição policial. Seus documentos foram destruídos e, sob a alegação de que ele era bandido, foi mandado como indigente ao hospital. Seu algoz foi blindado pela polícia. Comerciante já conhecido por suas ações de vigilante e crimes confessos dos quais foi liberado pela justiça. Mais uma vez um crime motivado pelo ódio racial.
Diego era estudante, tem família, era surfista e lutou horas no hospital pela sua vida. Exigimos do governador que dê respostas a mais uma mãe que se debruça sobre o cadáver de seu filho adolescente e reflita sobre os sete pecados que têm sido cometidos pelo seu governo no trato com a segurança pública, quais sejam:
1- A Ira da policia nos bairros populares de maioria negra. A criminalização de populações inteiras submetidas a constrangimento, atos de violência, desrespeito e morte. Nada sugere uma suspensão dos atos arbitrários. Os fatos dão prova de que tudo vai piorar.
2- A soberba dos governantes que não dialogam com a população e apresentam planos mirabolantes para nossa segurança sem nos consultar. Como o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, que para nós não passa de um Data Show que investe mais recursos em repressão do que em prevenção e tem tido o efeito de calar a boca de muita gente que poderia se pronunciar ante essa guerra que ceifa nossas vidas.
3- A avareza que impede muitas ONGs de se pronunciarem para não perder os vultosos recursos que se oferecem a cada cadáver que tomba de nosso lado da ponte. São os projetos para carentes e os intermináveis debates, seminários e encontros que se promovem em hotéis de luxo, onde se pratica...
4- ... a gula: conversam muito e vão para os coquetéis oferecidos com muito luxo e pompa deixando muita gente boa empanturrada e satisfeita, sentindo-se importante por que, de tempos em tempos, alguém vai para a televisão dizer que os negros estão fazendo algum progresso num governo democrático e popular, maquiando cinicamente os dados de nossa desgraça cotidiana
5- Luxúria: "Lúdico, Lúgubre e Luxurioso". Segundo o jornalista Dr. Fernando Conceição, estes são os três “Ls” que nos etiquetam. Assim somos vistos pela elite tacanha e neocolonialista brasileira. Como lúdicos, divertidos, que podem elevar as divisas e arrecadações cantando, dançando e até celebrando o turismo étnico baiano. Somos todos coletivamente "Lúgubres", monstruosamente perigosos, insanamente bárbaros e nos matamos enquanto nos embriagamos nas favelas. E somos "Luxuriosos" porque sexualmente desregrados, com bundas oferecidas às fantasias de europeus ávidos por sexo.
6- A vaidade tem sido a tônica, o motor e a marca dessa segurança que em nada mudou nessa nova gestão. Mantém os mesmos quadros da polícia, muitos envolvidos com a tortura e a violência, citados em CPIs . Mais fortes em seus cargos de comando mandando praças e agentes para fazer o trabalho sujo, reproduzindo a lógica escravocrata de nos matarmos para ter "status" com o senhor. É um Narciso que se acha belo, mas com a mesma imagem de 16 anos atrás. É o que pensamos e vivemos nas vilas, favelas e presídios. Nada mudou.
7- Preguiça é o mal que tem afetado muita gente boa que lutou ao nosso lado. Pessoas em quem apostamos nossas esperanças e agora se calam entre os senhores da Corte, assistindo ao extermínio de seu próprio povo; ou mesmo covardia, que não é exatamente um pecado capital cunhado no Vaticano, mas merece pena.
E, por fim, o silêncio que nos ronda já faz tempo, e é perigoso para um projeto do ponto de vista dos negros para o Brasil A Mãe de Diego pede justiça e nós nos apresentamos com o que temos. A alma de Diego se junta às almas de Edvandro Pereira, Clodoaldo Souza, Aurina, Djair, Ricardo e tantos outros tombados na guerra injusta.
Hoje, 3 de maio de 2008, às 16 hs, nós o sepultaremos e seu corpo será coberto por lágrimas e esperança. É tudo que nos resta, por hora.
Hamilton B. Walê é Militante/Poeta do MNU-BA e da campanha “Reaja ou será mort@!” contra a violência policial dirigida a negr@s na BA.
Dois atos públicos contra o racismo, a discriminação racial e o assassinato de jovens negros por militares.
1º ato: 7 de julho de 1978, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. Milhares de pessoas desafiavam a ditadura para protestar pela morte de Robson Silveira da Luz nas dependências do 44° DP, resultado de torturas praticadas por militares e pelas péssimas condições carcerárias no Brasil. E denunciar a discriminação sofrida por quatro garotos negros do Clube Tietê, proibidos de utilizar a piscina. Lá estava sendo criado o Movimento Negro Unificado (MNU).
2º ato: 7 de julho de 2008, nas mesmas escadarias de um país supostamente redemocratizado, com 20 anos da “Constituição Cidadã”. Um repúdio à tortura seguida do assassinato de três jovens negros entregues a traficantes pelo Exército, no morro da Providência (RJ); a novas agressões de skinheads contra rapaz negro em SP; à crescente perseguição, em todo Brasil, de templos e praticantes das religiões de Matriz Africana, depredados e agredidos por setores evangélicos reacionários; à campanha contra as cotas para negros, articulada por setores elitistas e pela grande mídia contrária a qualquer reparação; enfim, um repúdio também aos freqüentes ataques de grileiros, especuladores e empresas trans e nacionais às conquistas de direitos por quilombolas.
Hoje e aqui, a despeito de saltar aos olhos que muito pouco mudou na vida de negras e negros no Brasil, ao menos um motivo para realmente comemorar: a persistência radical de 30 anos do MNU. (DD)
30 anos de Movimento Negro Unificado (MNU)
Reginaldo Bispo
No rol das muitas comemorações de datas históricas em 2008, destacam-se os 200 anos da chegada da família real no Brasil em março; os 120 anos da abolição da escravatura, em maio; e um fato histórico contemporâneo: os 30 anos da criação do MNU, dia 07 de julho.
Se a chegada da família real marca a fundação do estado brasileiro e a introdução aqui dos elementos da cultura clássica européia: o luxo, a ostentação, além de outros valores pouco recomendáveis, como o acirramento da exploração escravista. O processo da abolição não se deveu à boa vontade da família, de D. João, dos Pedros I e II, tampouco de Dna. Isabel. Ao contrário, a família real foi a responsável por seu atraso, pois, além de proprietários, financiavam o comércio escravista, fazendo do Brasil o último país a abolir a escravidão.
A lei sexagenária liberou os proprietários de arcar com os custos de assistir ao negro que conseguisse sobreviver aos mal-tratos e à fúria animalesca dos proprietários. Um negro que sobrevivesse à violência desse tratamento, após os 60, era incapaz de sobreviver por meios próprios. Era libertado, pois, para morrer à míngua, liberando o patrão do ônus.
A lei do ventre-livre de 1871, outra farsa, colocava sob a tutela do estado a criança nascida livre, a qual ou permanecia sob o mando do escravista, proprietário da mãe, que a explorava até os 18 anos.
A “Abolição”, de 13 de maio de 1888, foi resultado de pressões internacionais - principalmente da Inglaterra, para escoar o excedente da sua produção industrial -, e das revoltas populares e negras que pipocavam no território brasileiro, as quais após a guerra do Paraguai e a vitória dos negros contra os escravocratas franceses no Haiti, tornaram-se um pesadelo para as elites escravistas de nossa terra.
Nestes 120 anos, pouco mudou nas relações sócio-econômico-culturais no Brasil. Os grilhões foram substituídos por um instrumento ideológico muito mais eficiente: o Racismo! Através de mecanismos econômicos, culturais, institucionais e legais, impõem os espaços que são permitidos aos negros, preservando os melhores para os brancos. Os castigos corporais foram substituídos por perseguição, prisões e a eliminação física de jovens negros por órgãos de segurança dos governos e da polícia em todo o país.
O racismo segregou os espaços de moradia, educação, consumo, através da monopolização dos melhores trabalhos e salários pelos euro-descendentes. Na sociedade, na política, o prestígio e os privilégios advêm da capacidade individual ou coletiva de possuir algum poder econômico, ou ter padrinhos, o que não foi permitido aos negros nestes 120 anos.
O MNU surgiu em 7 de julho de 1978, com ato público em frente ao Teatro Municipal de SP, em protesto contra manifestações de racismo: o assassinato de Robson Silveira da Luz, por policiais, dentro do DP de Guaianazes - Capital, e a segregação de atletas negros do Clube de Regatas Tietê, também em São Paulo, por diretores que os impediam de entrar na piscina do clube.
O 7 de julho foi um marco e dia de Glória para os negros de SP e do Brasil: em plena ditadura, milhares de negros desafiam a repressão e vão para a praça pública gritar em uníssono o que estava engasgado na garganta de todo um povo, desde a ilegalidade da Frente Negra em 1937, pelo estado novo; e do golpe militar que calou o Teatro Experimental do Negro, de Abdias do Nascimento, em 1964: “Não toleraremos mais o racismo e os racistas! De agora em diante os racistas não dormirão mais em paz! Estaremos organizados e vigilantes na luta contra o racismo!”
E assim tem sido, nestes 30 anos. Novas organizações surgiram, avanços e conquistas ocorreram, mas praticamente todos beberam e se inspiraram nos Programas de Ação do MNU, nas bandeiras e nas lutas travadas por nós. O MNU esteve em lutas e manifestações contra o regime de apartheid da África do Sul, pela derrubada da ditadura e eleições livres no Brasil, no Fora Collor, na Construção da CUT, na Constituinte - emplacando o reconhecimento das terras quilombolas, inclusão da história do negro nos currículos escolares, e o racismo como crime inafiançável. O MNU foi tema de artigos, teses e livros. E perseguido pela repressão e governos ditos “democráticos”, com detenções (é o caso de Neninho do Obaluaiê que, por sua militância, mofou 14 anos em penitenciária de SP); com demissões de militantes sindicais (como Milton Barbosa, do Metrô-SP e Reginaldo Bispo, da Unicamp) por governos do PSDB/PMDB.
Colecionamos nossos mártires: lutadores foram perseguidos, presos ou mortos pela polícia e grupos de extermínio. Militantes do MNU, em Salvador, vêm recebendo ameaças de morte devido à campanha “Reaja ou será mort@!”, articulada pelo movimento junto a outras entidades negras. A recente acusação de um alto funcionário da Sec. de Segurança, de que o MNU “seria uma organização criminosa” pela campanha que faz contra a matança de jovens negros e por melhores condições aos encarcerados nas prisões públicas da Bahia - que mais lembram navios negreiros (pela maioria de negros e pelas condições fétidas e anti-humanas) -, nos dão uma idéia de como os carlistas ainda comandam o governo da BA. Será responsabilidade do governo petista de Jaques Wagner se algo vier a ocorrer com aqueles irmãos e irmãs.
Este ano é especial: muitas manifestações serão realizadas em todo o país. Ao reavivarmos esta história, renovamos nosso compromisso e disposição para seguir lutando, de forma independente, contra o racismo, em defesa de um Brasil melhor, onde negros e negras exerçam seus direitos inalienáveis de liberdade e cidadania, conscientes e organizados, construindo o CONNEB (Congresso Nacional de Negras e Negros do Brasil) e o Projeto Político do Povo Negro para o Brasil, inclusivo e justo, onde os 50% da população, nós e nossas futuras gerações ocupemos os espaços que nos pertencem de direito. Longa vida ao MNU!
Reginaldo Bispo é Coordenador Estadual do MNU-SP.
Os 7 pecados Capitais – na Segurança Pública da BA
Hamilton Borges Walê
Mais um jovem com sonhos e um belo futuro abatido em Salvador. Dessa vez na comunidade de São Cristóvão, conhecida como Planeta dos Macacos não por acaso, mas pelo seu contingente populacional negro. Os negros são mortos como insetos e a cada feriado ou final de semana as estatísticas parecem que nos desafiam a alguma ação. Parece que são os números que nos cobram.Temos tabulado tantos corpos que já perdemos as contas.
A mãe de Diego de Jesus Sampaio, 17 anos, nos recebeu em sua casa. Reuniu as forças que podia e nos pediu justiça, para que lutemos, para que outra mãe não chore como ela. Atravessamos a cidade em meio a uma chuva torrencial, pouco preocupados com a epidemia de dengue que nos ameaça tanto quanto a violência, saltamos os buracos e os esgotos a céu aberto, tínhamos que cumprir uma missão quase inútil dada a gravidade dessa outra epidemia que nos assola com farda de polícia e distintivo oficial. Oferecemo-nos para repercutir, denunciar, gritar e articular uma reação pela cidade.
Diego foi morto covardemente, depois de uma sessão de tortura. Foi alvejado várias vezes. O corpo foi conduzido por seu algoz até uma guarnição policial. Seus documentos foram destruídos e, sob a alegação de que ele era bandido, foi mandado como indigente ao hospital. Seu algoz foi blindado pela polícia. Comerciante já conhecido por suas ações de vigilante e crimes confessos dos quais foi liberado pela justiça. Mais uma vez um crime motivado pelo ódio racial.
Diego era estudante, tem família, era surfista e lutou horas no hospital pela sua vida. Exigimos do governador que dê respostas a mais uma mãe que se debruça sobre o cadáver de seu filho adolescente e reflita sobre os sete pecados que têm sido cometidos pelo seu governo no trato com a segurança pública, quais sejam:
1- A Ira da policia nos bairros populares de maioria negra. A criminalização de populações inteiras submetidas a constrangimento, atos de violência, desrespeito e morte. Nada sugere uma suspensão dos atos arbitrários. Os fatos dão prova de que tudo vai piorar.
2- A soberba dos governantes que não dialogam com a população e apresentam planos mirabolantes para nossa segurança sem nos consultar. Como o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, que para nós não passa de um Data Show que investe mais recursos em repressão do que em prevenção e tem tido o efeito de calar a boca de muita gente que poderia se pronunciar ante essa guerra que ceifa nossas vidas.
3- A avareza que impede muitas ONGs de se pronunciarem para não perder os vultosos recursos que se oferecem a cada cadáver que tomba de nosso lado da ponte. São os projetos para carentes e os intermináveis debates, seminários e encontros que se promovem em hotéis de luxo, onde se pratica...
4- ... a gula: conversam muito e vão para os coquetéis oferecidos com muito luxo e pompa deixando muita gente boa empanturrada e satisfeita, sentindo-se importante por que, de tempos em tempos, alguém vai para a televisão dizer que os negros estão fazendo algum progresso num governo democrático e popular, maquiando cinicamente os dados de nossa desgraça cotidiana
5- Luxúria: "Lúdico, Lúgubre e Luxurioso". Segundo o jornalista Dr. Fernando Conceição, estes são os três “Ls” que nos etiquetam. Assim somos vistos pela elite tacanha e neocolonialista brasileira. Como lúdicos, divertidos, que podem elevar as divisas e arrecadações cantando, dançando e até celebrando o turismo étnico baiano. Somos todos coletivamente "Lúgubres", monstruosamente perigosos, insanamente bárbaros e nos matamos enquanto nos embriagamos nas favelas. E somos "Luxuriosos" porque sexualmente desregrados, com bundas oferecidas às fantasias de europeus ávidos por sexo.
6- A vaidade tem sido a tônica, o motor e a marca dessa segurança que em nada mudou nessa nova gestão. Mantém os mesmos quadros da polícia, muitos envolvidos com a tortura e a violência, citados em CPIs . Mais fortes em seus cargos de comando mandando praças e agentes para fazer o trabalho sujo, reproduzindo a lógica escravocrata de nos matarmos para ter "status" com o senhor. É um Narciso que se acha belo, mas com a mesma imagem de 16 anos atrás. É o que pensamos e vivemos nas vilas, favelas e presídios. Nada mudou.
7- Preguiça é o mal que tem afetado muita gente boa que lutou ao nosso lado. Pessoas em quem apostamos nossas esperanças e agora se calam entre os senhores da Corte, assistindo ao extermínio de seu próprio povo; ou mesmo covardia, que não é exatamente um pecado capital cunhado no Vaticano, mas merece pena.
E, por fim, o silêncio que nos ronda já faz tempo, e é perigoso para um projeto do ponto de vista dos negros para o Brasil A Mãe de Diego pede justiça e nós nos apresentamos com o que temos. A alma de Diego se junta às almas de Edvandro Pereira, Clodoaldo Souza, Aurina, Djair, Ricardo e tantos outros tombados na guerra injusta.
Hoje, 3 de maio de 2008, às 16 hs, nós o sepultaremos e seu corpo será coberto por lágrimas e esperança. É tudo que nos resta, por hora.
Hamilton B. Walê é Militante/Poeta do MNU-BA e da campanha “Reaja ou será mort@!” contra a violência policial dirigida a negr@s na BA.
O Estado de direito no Brasil é uma ficção
Entrevista de Maurício Campos a Danilo Dara
(Jornal Brasil de Fato de 17 a 23/07 de 2008)
A execução do menino João Roberto, de 3 anos, por policiais militares, dia 7 de julho, no Rio de Janeiro (RJ) chama a atenção por pelo menos dois motivos: um deles é o aumento de casos de mortes por “engano”, cometidas pela polícia. O outro é o tratamento dispensado pela imprensa corporativa em relação à violência.
Quando é praticada contra pessoas da classe média e ricos, adota um tom de indignação e de cobrança de explicações e medidas por parte do Poder Público. Já quando as vítimas são pobres, quando não se apóia a repressão, trata-se o caso de maneira sensacionalista e apressa-se por encontrar razões e culpados individuais.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Maurício Campos, da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência afirma que mesmo quando a classe média se torna vítima da violência estatal “a grande imprensa encontra meios de manter o preconceito de classe atuante, ao tratar com ênfase e cobranças diferentes cada caso”. De acordo com Campos, “a criminalização da pobreza se revela mesmo quando as vítimas do Estado não são exatamente pobres”.
Leia a seguir a entrevista.
Brasil de Fato- Como a Rede avalia a diferença de tratamento da grande mídia em relação à violência contra classe média e ricos, comparado ao utilizado na violência cotidiana contra pobres?
Maurício Campos- Sempre dissemos que a violência do Estado tem alvo e métodos bem determinados. O mesmo policial que atira indiscriminadamente, ofende e extorque na favela, em geral tem um comportamento bastante distinto em bairros ricos, e até agora diante da classe média. Contudo, quanto mais se sentem poderosos e estimulados a agir acima da lei, menores são os cuidados que tomam mesmo fora das favelas e periferias. Não adianta muito o secretário (Mariano) Beltrame lembrar à tropa que “um tiro na favela da Coréia é uma coisa, um tiro em Copacabana é outra” (conforme declaração sua logo depois da “mega-operação” naquela favela da Zona Oeste, em outubro de 2007), se a ordem principal é “atire! atire!”
Mas, mesmo quando a classe média também se torna vítima da violência estatal, a grande imprensa encontra meios de manter o preconceito de classe atuante, ao tratar com ênfase e cobranças diferentes cada caso. Quer dizer, a criminalização da pobreza se revela mesmo quando as vítimas do Estado não são exatamente pobres.
Muitos órgãos de imprensa e principalmente representantes do Estado tratam logo de responsabilizar o despreparo e o excesso individual dos policiais como principal razão dos casos absurdos de violência. Trata-se de despreparo e excesso individual ou, ao contrário, de uma alta preparação exatamente para o excesso de violência contra a população, sobretudo a mais pobre?
O “despreparo” da polícia em agir dentro do respeito aos direitos humanos é algo generalizado em toda corporação. Logo, na verdade é um “preparo” de uma tropa brutal e violenta. Isto está hoje em dia muito documentado, através de livros (como o “Elite da Tropa”) ou reportagens que de uma forma ou outra descrevem o real processo de treinamento dos policiais. Desde as situações humilhantes, até os cantos e refrões violentos, tudo leva o policial a se comportar de maneira agressiva e buscando sempre eliminar o “inimigo”, que não tem uma definição muito precisa a não ser morar na favela. É uma preparação para uma guerra suja muita parecida com a que os soldados dos EUA recebem para participar da dita “guerra contra o terror”, com métodos muito semelhantes.
As operações da PF contra banqueiros como Daniel Dantas trouxeram à tona a discussão de que atualmente os ricos no Brasil não desfrutam mais de impunidade, e são tratados como os pobres. Por outro lado, várias vozes da opinião pública só agora se levantam contra a “espetacularização de prisões” e em defesa do direito constitucional à defesa e ao “habeas corpus”, contra a execração pública. Ao mesmo tempo, mais de 50% da população carcerária brasileira espera há muito tempo seu habeas corpus, sem qualquer esperança de julgamento, e via de regra são presos e expostos como troféus diante das câmeras de telejornais. Como você vê essa ambigüidade?
Essa é outra face da visão preconceituosa de classe promovida pela grande imprensa e outros setores formadores da “opinião púbica”. Direitos e respeito pelas garantias individuais só são cobrados tanto quando os atingidos fazem parte da elite econômica e social. Por outro lado, não se fala da absoluta desproporcionalidade entre o grau de violência, prisões e punição quando os possíveis criminosos são pobres ou ricos. Se houvesse um combate de fato à criminalidade organizada, é claro que as operações teriam que se concentrar na parte mais organizada e bem estruturada, que está nas grandes empresas e no aparelho de estado. É nesse “alto crime” que se realizam as operações mais complexas e decisivas da rede criminosa, como a importação em grande quantidade de drogas e armas, a receptação de roubos e a lavagem de dinheiro. Se isso fosse desarticulado, mesmo o “pequeno crime”, o crime desorganizado das favelas e periferias, logo seria atingido sem a necessidade de tiros e mortes. A violência e a brutalidade policial não têm nenhuma função real de combate às redes criminosas, mas servem como meio de controle social e militarização dos conflitos.
Alguns pesquisadores acreditam que o Rio de Janeiro, junto ao Haiti, tem se transformado num verdadeiro laboratório (teórico e prático) de operações militares conjuntas entre forças policiais e do exército para a criminalização e repressão de comunidades pobres. Qual a posição da Rede sobre isso?
Já há algum tempo temos chamado a atenção para o intercâmbio crescente de estratégias, experiências e técnicas entre as forças policiais e militares brasileiras e suas congêneres dos Estados Unidos, Israel e Colômbia. Quer dizer, operações supostamente de “combate ao crime” são equiparadas a operações contra-insurgentes, guerra de baixa intensidade, ocupação de territórios estrangeiros ou “guerra ao terror”. Grupos completamente diferentes, como guerrilheiros islâmicos que abominam álcool e drogas, ou os pequenos traficantes das favelas, são classificadas sem nenhum critério como o mesmo tipo de “inimigos”. O que há de verdade em comum são populações urbanas pobres e potencialmente revoltadas vivendo em áreas densamente povoadas. Logo, trata-se de intercâmbios militares, e não de técnicas policiais.
Tem sido possível lutar pela defesa dos direitos humanos no Brasil sem questionar a própria lógica econômica e política do estado brasileiro e da maneira por meio da qual o capitalismo global tem incentivado a penalização da pobreza, o encarceramento em massa e outras estratégias de controle, sobretudo na periferia?
É possível “despolitizar” a questão? Claro que não. Não é papel dos movimentos sociais em defesa dos direitos humanos apresentar alternativas técnicas de “políticas de segurança”, inclusive porque a questão de fundo não é a melhor maneira de “combater a criminalidade”, como o discurso dominante procura impor. Entretanto, defender intransigentemente o respeito aos direitos individuais e coletivos das populações pobres, sem fazer concessões ao discurso da “segurança pública”, têm hoje, em si mesmo um potencial transformador, porque o capitalismo depende da criminalização da pobreza para manter seu domínio, econômico, político e ideológico.
Fale sobre a idéia do “Tribunal Popular: o Estado Brasileiro no Banco dos Réus”, que está sendo organizado por uma série de movimentos sociais, inclusive a Rede, para dezembro deste ano, exatamente entre os aniversários de 20 anos da “Constituição Cidadã” brasileira (05 de outubro), e os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (10 de dezembro).
Essa proposta surgiu em São Paulo e nós da Rede imediatamente aderimos, assim como outras organizações aqui do Rio. A idéia geral é julgar o Estado Brasileiro por meio das leis internacionais e nacionais que ele mesmo reconhece, face às violações sistemáticas de direitos em quatro grandes áreas: violência contra movimentos e pobres do campo; violência contra a juventude pobre; violência no sistema prisional e violência estatal sob pretexto de segurança pública nas comunidades urbanas pobres. Vamos apresentar casos bem documentados e relacioná-los com outros, proceder aos passos de um julgamento usual (acusação, apresentação de provas, defesa, etc) e chegar a um veredito. Tudo com a presença de observadores internacionais, e pretende-se viabilizar a transmissão em tempo real para várias partes do país. Em minha opinião, isso mostrará como o Estado de Direito no Brasil é uma ficção, e daí a necessidade da organização popular e da solidariedade internacional para mudar de fato esta situação.
O que é a Rede?
A Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência é um movimento social independente do Estado, de empresas, partidos políticos e igrejas. Reúne moradores de favelas e comunidades pobres em geral, sobreviventes e familiares de vítimas da violência policial ou militar; além de militantes populares e de direitos humanos. A Rede atua preservando a autonomia de comunidades, movimentos sociais e indivíduos que lutam contra a violência do Estado e as violações de direitos humanos praticadas por agentes estatais nas comunidades pobres.
Quem é Maurício Campos?
começou a militar no final dos anos 70, no período das greves operárias e da luta pela anistia. Atuou nos movimentos estudantil e popular, principalmente no movimento de moradia e em favelas; sobretudo a partir dos anos 90. Engenheiro mecânico e civil, desde 2000 faz parte da Frente de Luta Popular. Em 2004 passa a integrar a Rede contra a Violência.
(Jornal Brasil de Fato de 17 a 23/07 de 2008)
A execução do menino João Roberto, de 3 anos, por policiais militares, dia 7 de julho, no Rio de Janeiro (RJ) chama a atenção por pelo menos dois motivos: um deles é o aumento de casos de mortes por “engano”, cometidas pela polícia. O outro é o tratamento dispensado pela imprensa corporativa em relação à violência.
Quando é praticada contra pessoas da classe média e ricos, adota um tom de indignação e de cobrança de explicações e medidas por parte do Poder Público. Já quando as vítimas são pobres, quando não se apóia a repressão, trata-se o caso de maneira sensacionalista e apressa-se por encontrar razões e culpados individuais.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Maurício Campos, da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência afirma que mesmo quando a classe média se torna vítima da violência estatal “a grande imprensa encontra meios de manter o preconceito de classe atuante, ao tratar com ênfase e cobranças diferentes cada caso”. De acordo com Campos, “a criminalização da pobreza se revela mesmo quando as vítimas do Estado não são exatamente pobres”.
Leia a seguir a entrevista.
Brasil de Fato- Como a Rede avalia a diferença de tratamento da grande mídia em relação à violência contra classe média e ricos, comparado ao utilizado na violência cotidiana contra pobres?
Maurício Campos- Sempre dissemos que a violência do Estado tem alvo e métodos bem determinados. O mesmo policial que atira indiscriminadamente, ofende e extorque na favela, em geral tem um comportamento bastante distinto em bairros ricos, e até agora diante da classe média. Contudo, quanto mais se sentem poderosos e estimulados a agir acima da lei, menores são os cuidados que tomam mesmo fora das favelas e periferias. Não adianta muito o secretário (Mariano) Beltrame lembrar à tropa que “um tiro na favela da Coréia é uma coisa, um tiro em Copacabana é outra” (conforme declaração sua logo depois da “mega-operação” naquela favela da Zona Oeste, em outubro de 2007), se a ordem principal é “atire! atire!”
Mas, mesmo quando a classe média também se torna vítima da violência estatal, a grande imprensa encontra meios de manter o preconceito de classe atuante, ao tratar com ênfase e cobranças diferentes cada caso. Quer dizer, a criminalização da pobreza se revela mesmo quando as vítimas do Estado não são exatamente pobres.
Muitos órgãos de imprensa e principalmente representantes do Estado tratam logo de responsabilizar o despreparo e o excesso individual dos policiais como principal razão dos casos absurdos de violência. Trata-se de despreparo e excesso individual ou, ao contrário, de uma alta preparação exatamente para o excesso de violência contra a população, sobretudo a mais pobre?
O “despreparo” da polícia em agir dentro do respeito aos direitos humanos é algo generalizado em toda corporação. Logo, na verdade é um “preparo” de uma tropa brutal e violenta. Isto está hoje em dia muito documentado, através de livros (como o “Elite da Tropa”) ou reportagens que de uma forma ou outra descrevem o real processo de treinamento dos policiais. Desde as situações humilhantes, até os cantos e refrões violentos, tudo leva o policial a se comportar de maneira agressiva e buscando sempre eliminar o “inimigo”, que não tem uma definição muito precisa a não ser morar na favela. É uma preparação para uma guerra suja muita parecida com a que os soldados dos EUA recebem para participar da dita “guerra contra o terror”, com métodos muito semelhantes.
As operações da PF contra banqueiros como Daniel Dantas trouxeram à tona a discussão de que atualmente os ricos no Brasil não desfrutam mais de impunidade, e são tratados como os pobres. Por outro lado, várias vozes da opinião pública só agora se levantam contra a “espetacularização de prisões” e em defesa do direito constitucional à defesa e ao “habeas corpus”, contra a execração pública. Ao mesmo tempo, mais de 50% da população carcerária brasileira espera há muito tempo seu habeas corpus, sem qualquer esperança de julgamento, e via de regra são presos e expostos como troféus diante das câmeras de telejornais. Como você vê essa ambigüidade?
Essa é outra face da visão preconceituosa de classe promovida pela grande imprensa e outros setores formadores da “opinião púbica”. Direitos e respeito pelas garantias individuais só são cobrados tanto quando os atingidos fazem parte da elite econômica e social. Por outro lado, não se fala da absoluta desproporcionalidade entre o grau de violência, prisões e punição quando os possíveis criminosos são pobres ou ricos. Se houvesse um combate de fato à criminalidade organizada, é claro que as operações teriam que se concentrar na parte mais organizada e bem estruturada, que está nas grandes empresas e no aparelho de estado. É nesse “alto crime” que se realizam as operações mais complexas e decisivas da rede criminosa, como a importação em grande quantidade de drogas e armas, a receptação de roubos e a lavagem de dinheiro. Se isso fosse desarticulado, mesmo o “pequeno crime”, o crime desorganizado das favelas e periferias, logo seria atingido sem a necessidade de tiros e mortes. A violência e a brutalidade policial não têm nenhuma função real de combate às redes criminosas, mas servem como meio de controle social e militarização dos conflitos.
Alguns pesquisadores acreditam que o Rio de Janeiro, junto ao Haiti, tem se transformado num verdadeiro laboratório (teórico e prático) de operações militares conjuntas entre forças policiais e do exército para a criminalização e repressão de comunidades pobres. Qual a posição da Rede sobre isso?
Já há algum tempo temos chamado a atenção para o intercâmbio crescente de estratégias, experiências e técnicas entre as forças policiais e militares brasileiras e suas congêneres dos Estados Unidos, Israel e Colômbia. Quer dizer, operações supostamente de “combate ao crime” são equiparadas a operações contra-insurgentes, guerra de baixa intensidade, ocupação de territórios estrangeiros ou “guerra ao terror”. Grupos completamente diferentes, como guerrilheiros islâmicos que abominam álcool e drogas, ou os pequenos traficantes das favelas, são classificadas sem nenhum critério como o mesmo tipo de “inimigos”. O que há de verdade em comum são populações urbanas pobres e potencialmente revoltadas vivendo em áreas densamente povoadas. Logo, trata-se de intercâmbios militares, e não de técnicas policiais.
Tem sido possível lutar pela defesa dos direitos humanos no Brasil sem questionar a própria lógica econômica e política do estado brasileiro e da maneira por meio da qual o capitalismo global tem incentivado a penalização da pobreza, o encarceramento em massa e outras estratégias de controle, sobretudo na periferia?
É possível “despolitizar” a questão? Claro que não. Não é papel dos movimentos sociais em defesa dos direitos humanos apresentar alternativas técnicas de “políticas de segurança”, inclusive porque a questão de fundo não é a melhor maneira de “combater a criminalidade”, como o discurso dominante procura impor. Entretanto, defender intransigentemente o respeito aos direitos individuais e coletivos das populações pobres, sem fazer concessões ao discurso da “segurança pública”, têm hoje, em si mesmo um potencial transformador, porque o capitalismo depende da criminalização da pobreza para manter seu domínio, econômico, político e ideológico.
Fale sobre a idéia do “Tribunal Popular: o Estado Brasileiro no Banco dos Réus”, que está sendo organizado por uma série de movimentos sociais, inclusive a Rede, para dezembro deste ano, exatamente entre os aniversários de 20 anos da “Constituição Cidadã” brasileira (05 de outubro), e os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (10 de dezembro).
Essa proposta surgiu em São Paulo e nós da Rede imediatamente aderimos, assim como outras organizações aqui do Rio. A idéia geral é julgar o Estado Brasileiro por meio das leis internacionais e nacionais que ele mesmo reconhece, face às violações sistemáticas de direitos em quatro grandes áreas: violência contra movimentos e pobres do campo; violência contra a juventude pobre; violência no sistema prisional e violência estatal sob pretexto de segurança pública nas comunidades urbanas pobres. Vamos apresentar casos bem documentados e relacioná-los com outros, proceder aos passos de um julgamento usual (acusação, apresentação de provas, defesa, etc) e chegar a um veredito. Tudo com a presença de observadores internacionais, e pretende-se viabilizar a transmissão em tempo real para várias partes do país. Em minha opinião, isso mostrará como o Estado de Direito no Brasil é uma ficção, e daí a necessidade da organização popular e da solidariedade internacional para mudar de fato esta situação.
O que é a Rede?
A Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência é um movimento social independente do Estado, de empresas, partidos políticos e igrejas. Reúne moradores de favelas e comunidades pobres em geral, sobreviventes e familiares de vítimas da violência policial ou militar; além de militantes populares e de direitos humanos. A Rede atua preservando a autonomia de comunidades, movimentos sociais e indivíduos que lutam contra a violência do Estado e as violações de direitos humanos praticadas por agentes estatais nas comunidades pobres.
Quem é Maurício Campos?
começou a militar no final dos anos 70, no período das greves operárias e da luta pela anistia. Atuou nos movimentos estudantil e popular, principalmente no movimento de moradia e em favelas; sobretudo a partir dos anos 90. Engenheiro mecânico e civil, desde 2000 faz parte da Frente de Luta Popular. Em 2004 passa a integrar a Rede contra a Violência.
Estratégias globalizadas para a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais
Danilo Dara
Há um padrão comum de criminalização da pobreza e dos movimentos sociais construído e vigorando em todo o mundo.
Este foi o ponto de partida dos relatos durante o seminário internacional sobre “Criminalização da pobreza e dos movimentos sociais na América Latina” – iniciativa do Instituto Rosa Luxemburg e da Rede Social dos Direitos Humanos, entre 18 e 20 de junho na Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema-SP. O encontro reuniu mais de 70 participantes de vários países, entre eles Argentina, Chile, México, Paraguai e Alemanha, além do Brasil.
Durante as discussões pôde-se observar uma série de estratégias comuns de criminalização e repressão ao conjunto mais pobre das sociedades, organizados ou não. Criminalização e repressão dirigidas especialmente contra grupos étnicos específicos (povos originários e afro-descendentes), sem-terra, sem-teto, trabalhadores informais ou desempregados, mulheres e migrantes. Além, obviamente, do alvo prioritário: movimentos populares – visando seu enfraquecimento e, se possível, sua dissolução.
México
Segundo Pablo Romo, do Observatório da Conflitividade Social no México, a criminalização é marcada “pelo desenvolvimento das reformas estruturais que os governos neoliberais iniciaram no final dos anos 1980 e que se implementam agora em sua segunda fase”. Para ele, na relação entre movimentos e Estado “estão se reduzindo as possibilidades de saídas negociadas, pois por um lado o Estado está cada vez menos disposto a fazer concessões substantivas, e justificam esse endurecimento qualificando os movimentos de extra-legais e ilegítimos; de não serem interlocutores válidos que mereçam ser incorporados por meio da pressão a nenhum tipo de negociação-acordo. Por outro lado – acrescenta – um número significativo de movimentos está cada vez menos disposto a ceder frente à decisão vertical ou frente aos danos e destruição a que são submetidos”.
Pablo destaca ainda o papel crucial desempenhado pelos meios de comunicação na legitimação da repressão estatal, citando como exemplo os casos de Oaxaca e Atenco no México em 2007, quando as redes de TV trataram de repetir inúmeras vezes imagens pinçadas de militantes reagindo a provocações policiais, visando com isto legitimar o uso de forças repressivas desproporcionais, tendo como conseqüência centenas de feridos e detidos, e dezenas de mortos.
Chile
E por falar na atuação da grande imprensa corporativa, a situação chilena pós-ditadura é marcada por uma forte influência destes meios. Se por um lado o caráter repressivo do Estado chileno tem raízes de longa data – atingindo seu auge a partir de 1973 e durante os dezessete anos seguintes de ditadura militar liderada por Augusto Pinochet -, por outro lado o cenário “redemocratizado” não parece nada alentador. Segundo o sociólogo Raùl Zarzuri Cortès, professor da Universidade Academia de Humanismo Cristão (UAHC) e pesquisador do Centro de Estudos Sócio-culturais (CESC), atualmente “a criminalização não se reveste necessariamente de tintas tão repressivas tintes, com as características que se manifestaram durante a ditadura, mas o que vemos é que enfrentamos um novo tipo de repressão que denominamos ‘repressão simbólica’ levada a cabo pelos meios de comunicação, principalmente a televisão e a imprensa escrita, que têm contribuído para construir uma visão mirada de certos sujeitos e ações reivindicativas como novos ‘bárbaros’ ou monstros sociais”.
Raùl sustenta que, embora não haja violações flagrantes dos direitos humanos no Chile - “com exceção no caso dos povos mapuche, que sistematicamente têm sido perseguidos mediante leis repressivas herdadas da ditadura” – ainda falta muito o quê se resguardar em relação à liberdade de expressão, em particular pelo alto número de detenções em manifestações de rua "as quais afetam principalmente sujeitos jovens, ainda que não imobilizem novas ações coletivas”.
Argentina
No caso argentino, analisando os desdobramentos desde a crise de 2001 até a relativamente esperançosa ascensão dos Kirchner, Maristella Svampa observou um duplo movimento: durante a crise, “o governo nacional não titubeou em alimentar a estigmatização do protesto – contrapondo a mobilização de rua à exigência de ‘normalidade institucional’”, difundindo uma imagem da “democracia sendo acossada por movimentos sociais”, sobretudo os piqueteiros. Para Svampa, “como resultado, houve o avanço da ‘judicialização’ e da criminalização no tratamento dos conflitos sociais, e a instalação de um forte consenso antipiqueteiro, sustentado e apoiado por amplos setores da opinião pública”.
Um cenário cuja promessa de reversão – apontada pelo governo Kirchner aos setores populares – não só não foi cumprida (salvo uma ou outra sinalização, como no julgamento de alguns militares) como, em muitos casos, intensificado.. Ao mesmo tempo, como aponta Roberto Gargarella, “as políticas penais parecem desenhadas ao calor das demandas conjunturais dos grupos melhor situados. Os quais têm mostrado reiteradamente, nestes últimos anos, sua capacidade para influir no redesenho do Código Penal argentino, bloqueando reformas mais racionais”.
Outro aspecto do que se passa na Argentina diz respeito à mudança histórica de amplitude política na atuação das organizações sociais em defesa dos Direitos Humanos, que durante a ditadura militar no país tiveram papel fundamental para sua superação. No entanto, segundo Claudia Korol (Pañuelos en Rebeldia), teriam limitado seu alcance após a chamada redemocratização, o que coloca a necessidade de re-politizar o tema.
Alemanha
O cenário alarmante, no entanto, não se restringe à periferia do mundo. Os testemunhos sobre as estratégias de criminalização colocadas em prática atualmente na Alemanha, ecoando rumos europeus, são bastante preocupantes.
Conforme apontaram Corinna Genschel, do Comitê para os Direitos Civis e a Democracia, e Peer Stolle, da Associação de Advogados e Advogadas Republicanas da Alemanha, após a queda do muro e a unificação dos aparatos estatais (e policiais) de Leste a Oeste, o grau de controle em relação a qualquer tipo de mobilização social se intensificou muito. Desenvolveu-se um arcabouço jurídico-criminal chamado de “Estado de Segurança Preventiva”, que prevê, entre outros pontos, ampla capacidade de registro de dados dos cidadãos para uso da polícia; intervenções militares rígidas contra reuniões e manifestações políticas; proibição de algumas associações (sobretudo islâmicas - prejulgadas -, e de extrema direita, mas também organizações de esquerda); além de normas penais especiais para a criminalização de movimentos, vinculando-os a associações criminais e terroristas. Uma estratégia geral que, ademais, estaria relacionada à cooperação institucional e policial crescente entre os estados europeus, cujos novos interesses político-comerciais requerem crescente controle das fronteiras externas, e inimigos internos. Não por acaso, foram criadas a Polícia Européia – Europol, e a Procuradoria Geral do Continente – Eurojust.
Padrões comuns
Dentre os padrões de criminalização levantados durante o Seminário, é possível formular uma gradação de estratégias coordenadas para conter e neutralizar as insatisfações crescentes da população pobre em relação às chamadas “sociedades democráticas”. Estratégias civis-militares levadas a cabo em cada país geralmente por grandes proprietários, agentes estatais e grupos monopólicos de comunicação, articulados entre si:
• SILENCIAMENTO e INVISIBILIDADE das demandas populares, buscando-se consumar a sensação generalizada de impotência entre os mais pobres; • quando não é possível silenciar as reivindicações, passa-se à ESTIGMATIZAÇÃO dos seus sujeitos sociais, através da manipulação da notícia, no sentido de legitimar os setores e classes dominantes e seus padrões de “boa-conduta”, servindo ao controle do comportamento social.
• MONITORAMENTO é outra estratégia fundamental, cada vez mais avançada tecnológica e juridicamente – implicando quebra de direitos civis, invasão de privacidade, incremento de bancos de dados, buscas e apreensões noturnas etc. Como parte do monitoramento tenta-se também dividir as organizações populares para enfraquecê-las, via COOPTAÇÃO de militantes, INFILTRAÇÃO de disputas internas e, se possível, a DISPERSÃO territorial dos organizados (demissões em massa, despejos, etc.).
• CRIMINALIZAÇÃO – em geral, forjada por falsas notícias e informações. Trata-se do passo seguinte, quando as demandas resistem aos primeiros obstáculos e passam a ser exigidas mais incisivamente, sobretudo se manifestam por meio da mobilização social e se afetam grandes interesses do capital.
• Criminalização que visa justificar e legitimar a próxima etapa, a REPRESSÃO FÍSICA, seja contra protestos sociais, seja aleatoriamente de modo a intimidar (ou prevenir) qualquer reação popular – de preferência uma combinação das duas formas, a repressão concentrada e a difusa.
• caso todas as estratégias anteriores não dêem conta do inimigo, desemboca-se em um patamar repressivo superior da criminalização, também respaldado por novas REFORMULAÇÕES JURÍDICAS emergenciais que fundamentam a suspensão de todo e qualquer direito inconveniente aos fins repressivos: a JUDICIALIZAÇÃO dos supostos criminosos, DETENÇÕES em série, banalização da TORTURA, e ENCARCERAMENTO sistemático, chegando, em muitos casos, ao EXTERMÍNIO pontual e/ou massivo dos “suspeitos”.
Como resultado dessa permanente e meticulosa agressão contra direitos básicos, desencadeia-se uma ilimitada espiral repressiva. A escalada repressiva gera mais revolta, novamente tornada invisível e silenciada pelos meios de comunicação, realimentando assim o ciclo de violência. Geralmente, quando casos escandalosos escapam do controle dos agentes de contenção social e da informação, e se tornam conhecidos da opinião pública, o discurso dos agentes do Estado – corroborados pela grande mídia comercial – assenta-se nos chavões do senso comum, tipo “não há outra alternativa” ou “fomos obrigados a agir desta maneira”, sendo impossível evitar os “acidentes” e “excessos” cada vez mais recorrentes. Sempre “males menores” em relação ao objetivo supostamente inconteste das operações. Tampouco possível responsabilizar os verdadeiros culpados por esta escalada repressiva.
Brasil
Graças à escalada compulsiva desencadeada por tais operações, continuarão a proliferar em muitos países “dossiês confidenciais”, elaborados exatamente para vazar no “momento oportuno”, como o do Ministério Público gaúcho contra o MST.
Nos diversos países presentes ao Seminário, como aqui, tais dossiês são elaborados em nome da defesa dos “estados democráticos de direito” e da “segurança nacional e internacional”. Se há quarenta anos, civis-militares suspendiam formalmente uma série de direitos para efetivamente intensificar a repressão, atualmente, agentes do Estado intensificam a repressão em defesa dos direitos formais democráticos, na prática suspensos – embora não se dêem sequer ao trabalho de alterar os argumentos reacionários que já moviam os formuladores, no Brasil, dos Atos Institucionais. Isso tudo, como sempre, numa orquestração promíscua envolvendo grandes proprietários, representantes do Estado e grandes grupos de comunicação, além de quase sempre (acrescentaríamos) envolvendo sociedades criminosas como os esquadrões da morte dos anos 1960-1970, e até mesmo gangues do tráfico de drogas, armas e grupos de extermínio, como aconteceu recentemente no caso do Morro da Providência, no Rio de Janeiro. É nesse universo que se enquadram as recentes operações civis-militares-midiáticas do Rio Grande do Sul; a chacina dos três jovens do morro da Providência; a operação desencadeada pelos arrozeiros de Roraima, em parceria com o comandante militar da Região, general Augusto Heleno Pereira contra os índios da Reserva Raposa Serra do Sol, e até mesmo a invasão do território equatoriano pelas forças militares do regime narco-paramilitar da Colômbia, com apoio dos EUA.
Resumindo, mais do mesmo modelo comum à maioria dos países afetados pela longa maré neoliberal, na repressão contra suas diversas lutas recentes. Ou ainda, como preferiria dizer o francês Guy Debord, a passagem ao capitalismo "espetacular integrado".
Enfim, é bom nos prepararmos para o que vem por aí ou, pelo menos, para o que tentarão fazer daqui por diante. Por mais absurdo que pareça, tudo isto ainda é o começo.
Elementos do (anti)terrorismo
Um sistema social e um Estado que produzem o terror por meio de suas próprias leis e seus próprios agentes, necessitam sempre forjar um “inimigo público comum” para expiar a crescente insatisfação social, e para prevenir o aumento da revolta da sociedade contra sua própria forma catastrófica de funcionamento.
Como na obra “1984”, de George Orwell, é sempre preciso forjar um “Outro”, abominável... Não por acaso, o qualificativo encontrado por esse sistema para colar à imagem do seu “inimigo público número um” seja justamente o de “terrorista”, cuja construção, em regra – seja aqui ou em escala global – fundamenta-se na mentira. É exatamente a mesma inversão feita no Iraque, por exemplo, quando cidadãos daquele país, que resistem a décadas de invasão militar e genocídio, são chamados de “insurgentes” ou “rebeldes”, e sobre-criminalizados por tentarem precariamente resistir ao terror promovido pelos chamados “exércitos libertadores” do Ocidente.
É exatamente esse processo o que estão tentando desenvolver neste momento, de maneira desabusada, com relação ao MST, ao exigirem judicial e policialmente sua aniquilação. Não duvidemos que, daqui a pouco, os sem-terra serão também responsabilizados por crimes ambientais contra a humanidade, por serem dos principais protagonistas na defesa da Amazônia e de um modelo de desenvolvimento ecológico-social nas terras brasileiras. Terras pelas quais lutam, combatendo o agronegócio, que as monopoliza e devasta.
Mais que a propriedade das terras essas empresas contam ainda com agentes incrustados nas várias instâncias do aparelho de Estado (legislativos, judiciários e executivos – nas esferas municipais, estaduais e nacional –, forças armadas, polícias, etc) que o manipulam e tentam formatá-lo cada vez mais como uma ferramenta exclusivamente adequada à realização dos seus interesses. Ao lado disto, os grandes meios de comunicação comercial, mais que objetivos estratégicos comuns que comungam com o agronegócio (e por isto mesmo) são também financiados por essas empresas.
No caso do Rio Grande do Sul, neste momento, a orquestração contra o MST é exemplar: em nome da defesa da “ordem democrática”, do “Estado democrático de direito”, o Ministério Público local investe-se de poderes que a Constituição em vigor não lhe garante, organizando um plano secreto numa conspiração no interior do próprio aparelho do Estado, pela qual estigmatiza os sem-terra enquanto terroristas; a governadora (tucana) Yeda Crusius, nomeia comandante da sua Brigada Militar o coronel Paulo Roberto Mendes que dissemina a repressão e o terror contra o MST (e outros movimentos), como se as medidas ordenadas pelo Ministério Público local pudessem ter inconteste valor legal; por fim, no momento em que interessa a essa “santa aliança” – principalmente, em termos imediatos, de modo a criar uma cortina de fumaça para esconder a corrupção liderada pela chefa do Executivo local –, socorre-lhes a grande mídia comercial local (e nacional), através da qual fazem vazar e ecoar as decisões e orientações contidas no documento secreto – em vigor e prática já ao menos há sete meses – elaborado por unanimidade por membros do Conselho Superior do Ministério Público gaúcho. Quanto à contumaz promiscuidade desses encaminhamentos com organizações criminosas ilegais, basta lembrarmos as regulares investidas de capangas e milícias paramilitares contra os acampamentos naquele Estado.
Há um padrão comum de criminalização da pobreza e dos movimentos sociais construído e vigorando em todo o mundo.
Este foi o ponto de partida dos relatos durante o seminário internacional sobre “Criminalização da pobreza e dos movimentos sociais na América Latina” – iniciativa do Instituto Rosa Luxemburg e da Rede Social dos Direitos Humanos, entre 18 e 20 de junho na Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema-SP. O encontro reuniu mais de 70 participantes de vários países, entre eles Argentina, Chile, México, Paraguai e Alemanha, além do Brasil.
Durante as discussões pôde-se observar uma série de estratégias comuns de criminalização e repressão ao conjunto mais pobre das sociedades, organizados ou não. Criminalização e repressão dirigidas especialmente contra grupos étnicos específicos (povos originários e afro-descendentes), sem-terra, sem-teto, trabalhadores informais ou desempregados, mulheres e migrantes. Além, obviamente, do alvo prioritário: movimentos populares – visando seu enfraquecimento e, se possível, sua dissolução.
México
Segundo Pablo Romo, do Observatório da Conflitividade Social no México, a criminalização é marcada “pelo desenvolvimento das reformas estruturais que os governos neoliberais iniciaram no final dos anos 1980 e que se implementam agora em sua segunda fase”. Para ele, na relação entre movimentos e Estado “estão se reduzindo as possibilidades de saídas negociadas, pois por um lado o Estado está cada vez menos disposto a fazer concessões substantivas, e justificam esse endurecimento qualificando os movimentos de extra-legais e ilegítimos; de não serem interlocutores válidos que mereçam ser incorporados por meio da pressão a nenhum tipo de negociação-acordo. Por outro lado – acrescenta – um número significativo de movimentos está cada vez menos disposto a ceder frente à decisão vertical ou frente aos danos e destruição a que são submetidos”.
Pablo destaca ainda o papel crucial desempenhado pelos meios de comunicação na legitimação da repressão estatal, citando como exemplo os casos de Oaxaca e Atenco no México em 2007, quando as redes de TV trataram de repetir inúmeras vezes imagens pinçadas de militantes reagindo a provocações policiais, visando com isto legitimar o uso de forças repressivas desproporcionais, tendo como conseqüência centenas de feridos e detidos, e dezenas de mortos.
Chile
E por falar na atuação da grande imprensa corporativa, a situação chilena pós-ditadura é marcada por uma forte influência destes meios. Se por um lado o caráter repressivo do Estado chileno tem raízes de longa data – atingindo seu auge a partir de 1973 e durante os dezessete anos seguintes de ditadura militar liderada por Augusto Pinochet -, por outro lado o cenário “redemocratizado” não parece nada alentador. Segundo o sociólogo Raùl Zarzuri Cortès, professor da Universidade Academia de Humanismo Cristão (UAHC) e pesquisador do Centro de Estudos Sócio-culturais (CESC), atualmente “a criminalização não se reveste necessariamente de tintas tão repressivas tintes, com as características que se manifestaram durante a ditadura, mas o que vemos é que enfrentamos um novo tipo de repressão que denominamos ‘repressão simbólica’ levada a cabo pelos meios de comunicação, principalmente a televisão e a imprensa escrita, que têm contribuído para construir uma visão mirada de certos sujeitos e ações reivindicativas como novos ‘bárbaros’ ou monstros sociais”.
Raùl sustenta que, embora não haja violações flagrantes dos direitos humanos no Chile - “com exceção no caso dos povos mapuche, que sistematicamente têm sido perseguidos mediante leis repressivas herdadas da ditadura” – ainda falta muito o quê se resguardar em relação à liberdade de expressão, em particular pelo alto número de detenções em manifestações de rua "as quais afetam principalmente sujeitos jovens, ainda que não imobilizem novas ações coletivas”.
Argentina
No caso argentino, analisando os desdobramentos desde a crise de 2001 até a relativamente esperançosa ascensão dos Kirchner, Maristella Svampa observou um duplo movimento: durante a crise, “o governo nacional não titubeou em alimentar a estigmatização do protesto – contrapondo a mobilização de rua à exigência de ‘normalidade institucional’”, difundindo uma imagem da “democracia sendo acossada por movimentos sociais”, sobretudo os piqueteiros. Para Svampa, “como resultado, houve o avanço da ‘judicialização’ e da criminalização no tratamento dos conflitos sociais, e a instalação de um forte consenso antipiqueteiro, sustentado e apoiado por amplos setores da opinião pública”.
Um cenário cuja promessa de reversão – apontada pelo governo Kirchner aos setores populares – não só não foi cumprida (salvo uma ou outra sinalização, como no julgamento de alguns militares) como, em muitos casos, intensificado.. Ao mesmo tempo, como aponta Roberto Gargarella, “as políticas penais parecem desenhadas ao calor das demandas conjunturais dos grupos melhor situados. Os quais têm mostrado reiteradamente, nestes últimos anos, sua capacidade para influir no redesenho do Código Penal argentino, bloqueando reformas mais racionais”.
Outro aspecto do que se passa na Argentina diz respeito à mudança histórica de amplitude política na atuação das organizações sociais em defesa dos Direitos Humanos, que durante a ditadura militar no país tiveram papel fundamental para sua superação. No entanto, segundo Claudia Korol (Pañuelos en Rebeldia), teriam limitado seu alcance após a chamada redemocratização, o que coloca a necessidade de re-politizar o tema.
Alemanha
O cenário alarmante, no entanto, não se restringe à periferia do mundo. Os testemunhos sobre as estratégias de criminalização colocadas em prática atualmente na Alemanha, ecoando rumos europeus, são bastante preocupantes.
Conforme apontaram Corinna Genschel, do Comitê para os Direitos Civis e a Democracia, e Peer Stolle, da Associação de Advogados e Advogadas Republicanas da Alemanha, após a queda do muro e a unificação dos aparatos estatais (e policiais) de Leste a Oeste, o grau de controle em relação a qualquer tipo de mobilização social se intensificou muito. Desenvolveu-se um arcabouço jurídico-criminal chamado de “Estado de Segurança Preventiva”, que prevê, entre outros pontos, ampla capacidade de registro de dados dos cidadãos para uso da polícia; intervenções militares rígidas contra reuniões e manifestações políticas; proibição de algumas associações (sobretudo islâmicas - prejulgadas -, e de extrema direita, mas também organizações de esquerda); além de normas penais especiais para a criminalização de movimentos, vinculando-os a associações criminais e terroristas. Uma estratégia geral que, ademais, estaria relacionada à cooperação institucional e policial crescente entre os estados europeus, cujos novos interesses político-comerciais requerem crescente controle das fronteiras externas, e inimigos internos. Não por acaso, foram criadas a Polícia Européia – Europol, e a Procuradoria Geral do Continente – Eurojust.
Padrões comuns
Dentre os padrões de criminalização levantados durante o Seminário, é possível formular uma gradação de estratégias coordenadas para conter e neutralizar as insatisfações crescentes da população pobre em relação às chamadas “sociedades democráticas”. Estratégias civis-militares levadas a cabo em cada país geralmente por grandes proprietários, agentes estatais e grupos monopólicos de comunicação, articulados entre si:
• SILENCIAMENTO e INVISIBILIDADE das demandas populares, buscando-se consumar a sensação generalizada de impotência entre os mais pobres; • quando não é possível silenciar as reivindicações, passa-se à ESTIGMATIZAÇÃO dos seus sujeitos sociais, através da manipulação da notícia, no sentido de legitimar os setores e classes dominantes e seus padrões de “boa-conduta”, servindo ao controle do comportamento social.
• MONITORAMENTO é outra estratégia fundamental, cada vez mais avançada tecnológica e juridicamente – implicando quebra de direitos civis, invasão de privacidade, incremento de bancos de dados, buscas e apreensões noturnas etc. Como parte do monitoramento tenta-se também dividir as organizações populares para enfraquecê-las, via COOPTAÇÃO de militantes, INFILTRAÇÃO de disputas internas e, se possível, a DISPERSÃO territorial dos organizados (demissões em massa, despejos, etc.).
• CRIMINALIZAÇÃO – em geral, forjada por falsas notícias e informações. Trata-se do passo seguinte, quando as demandas resistem aos primeiros obstáculos e passam a ser exigidas mais incisivamente, sobretudo se manifestam por meio da mobilização social e se afetam grandes interesses do capital.
• Criminalização que visa justificar e legitimar a próxima etapa, a REPRESSÃO FÍSICA, seja contra protestos sociais, seja aleatoriamente de modo a intimidar (ou prevenir) qualquer reação popular – de preferência uma combinação das duas formas, a repressão concentrada e a difusa.
• caso todas as estratégias anteriores não dêem conta do inimigo, desemboca-se em um patamar repressivo superior da criminalização, também respaldado por novas REFORMULAÇÕES JURÍDICAS emergenciais que fundamentam a suspensão de todo e qualquer direito inconveniente aos fins repressivos: a JUDICIALIZAÇÃO dos supostos criminosos, DETENÇÕES em série, banalização da TORTURA, e ENCARCERAMENTO sistemático, chegando, em muitos casos, ao EXTERMÍNIO pontual e/ou massivo dos “suspeitos”.
Como resultado dessa permanente e meticulosa agressão contra direitos básicos, desencadeia-se uma ilimitada espiral repressiva. A escalada repressiva gera mais revolta, novamente tornada invisível e silenciada pelos meios de comunicação, realimentando assim o ciclo de violência. Geralmente, quando casos escandalosos escapam do controle dos agentes de contenção social e da informação, e se tornam conhecidos da opinião pública, o discurso dos agentes do Estado – corroborados pela grande mídia comercial – assenta-se nos chavões do senso comum, tipo “não há outra alternativa” ou “fomos obrigados a agir desta maneira”, sendo impossível evitar os “acidentes” e “excessos” cada vez mais recorrentes. Sempre “males menores” em relação ao objetivo supostamente inconteste das operações. Tampouco possível responsabilizar os verdadeiros culpados por esta escalada repressiva.
Brasil
Graças à escalada compulsiva desencadeada por tais operações, continuarão a proliferar em muitos países “dossiês confidenciais”, elaborados exatamente para vazar no “momento oportuno”, como o do Ministério Público gaúcho contra o MST.
Nos diversos países presentes ao Seminário, como aqui, tais dossiês são elaborados em nome da defesa dos “estados democráticos de direito” e da “segurança nacional e internacional”. Se há quarenta anos, civis-militares suspendiam formalmente uma série de direitos para efetivamente intensificar a repressão, atualmente, agentes do Estado intensificam a repressão em defesa dos direitos formais democráticos, na prática suspensos – embora não se dêem sequer ao trabalho de alterar os argumentos reacionários que já moviam os formuladores, no Brasil, dos Atos Institucionais. Isso tudo, como sempre, numa orquestração promíscua envolvendo grandes proprietários, representantes do Estado e grandes grupos de comunicação, além de quase sempre (acrescentaríamos) envolvendo sociedades criminosas como os esquadrões da morte dos anos 1960-1970, e até mesmo gangues do tráfico de drogas, armas e grupos de extermínio, como aconteceu recentemente no caso do Morro da Providência, no Rio de Janeiro. É nesse universo que se enquadram as recentes operações civis-militares-midiáticas do Rio Grande do Sul; a chacina dos três jovens do morro da Providência; a operação desencadeada pelos arrozeiros de Roraima, em parceria com o comandante militar da Região, general Augusto Heleno Pereira contra os índios da Reserva Raposa Serra do Sol, e até mesmo a invasão do território equatoriano pelas forças militares do regime narco-paramilitar da Colômbia, com apoio dos EUA.
Resumindo, mais do mesmo modelo comum à maioria dos países afetados pela longa maré neoliberal, na repressão contra suas diversas lutas recentes. Ou ainda, como preferiria dizer o francês Guy Debord, a passagem ao capitalismo "espetacular integrado".
Enfim, é bom nos prepararmos para o que vem por aí ou, pelo menos, para o que tentarão fazer daqui por diante. Por mais absurdo que pareça, tudo isto ainda é o começo.
Elementos do (anti)terrorismo
Um sistema social e um Estado que produzem o terror por meio de suas próprias leis e seus próprios agentes, necessitam sempre forjar um “inimigo público comum” para expiar a crescente insatisfação social, e para prevenir o aumento da revolta da sociedade contra sua própria forma catastrófica de funcionamento.
Como na obra “1984”, de George Orwell, é sempre preciso forjar um “Outro”, abominável... Não por acaso, o qualificativo encontrado por esse sistema para colar à imagem do seu “inimigo público número um” seja justamente o de “terrorista”, cuja construção, em regra – seja aqui ou em escala global – fundamenta-se na mentira. É exatamente a mesma inversão feita no Iraque, por exemplo, quando cidadãos daquele país, que resistem a décadas de invasão militar e genocídio, são chamados de “insurgentes” ou “rebeldes”, e sobre-criminalizados por tentarem precariamente resistir ao terror promovido pelos chamados “exércitos libertadores” do Ocidente.
É exatamente esse processo o que estão tentando desenvolver neste momento, de maneira desabusada, com relação ao MST, ao exigirem judicial e policialmente sua aniquilação. Não duvidemos que, daqui a pouco, os sem-terra serão também responsabilizados por crimes ambientais contra a humanidade, por serem dos principais protagonistas na defesa da Amazônia e de um modelo de desenvolvimento ecológico-social nas terras brasileiras. Terras pelas quais lutam, combatendo o agronegócio, que as monopoliza e devasta.
Mais que a propriedade das terras essas empresas contam ainda com agentes incrustados nas várias instâncias do aparelho de Estado (legislativos, judiciários e executivos – nas esferas municipais, estaduais e nacional –, forças armadas, polícias, etc) que o manipulam e tentam formatá-lo cada vez mais como uma ferramenta exclusivamente adequada à realização dos seus interesses. Ao lado disto, os grandes meios de comunicação comercial, mais que objetivos estratégicos comuns que comungam com o agronegócio (e por isto mesmo) são também financiados por essas empresas.
No caso do Rio Grande do Sul, neste momento, a orquestração contra o MST é exemplar: em nome da defesa da “ordem democrática”, do “Estado democrático de direito”, o Ministério Público local investe-se de poderes que a Constituição em vigor não lhe garante, organizando um plano secreto numa conspiração no interior do próprio aparelho do Estado, pela qual estigmatiza os sem-terra enquanto terroristas; a governadora (tucana) Yeda Crusius, nomeia comandante da sua Brigada Militar o coronel Paulo Roberto Mendes que dissemina a repressão e o terror contra o MST (e outros movimentos), como se as medidas ordenadas pelo Ministério Público local pudessem ter inconteste valor legal; por fim, no momento em que interessa a essa “santa aliança” – principalmente, em termos imediatos, de modo a criar uma cortina de fumaça para esconder a corrupção liderada pela chefa do Executivo local –, socorre-lhes a grande mídia comercial local (e nacional), através da qual fazem vazar e ecoar as decisões e orientações contidas no documento secreto – em vigor e prática já ao menos há sete meses – elaborado por unanimidade por membros do Conselho Superior do Ministério Público gaúcho. Quanto à contumaz promiscuidade desses encaminhamentos com organizações criminosas ilegais, basta lembrarmos as regulares investidas de capangas e milícias paramilitares contra os acampamentos naquele Estado.
Família Trindade: 100 anos Solano Amores
Dona Raquel Trindade fala sobre o centenário do nascimento de seu pai, o grande poeta negro comunista e libertário Solano Trindade, e a continuidade do trabalho artístico coletivo germinado em Recife no início do século passado, espraiado pelo Brasil e mundo desde Duque de Caxias-RJ e do Embu de todos os cantos.
Danilo Dara
Marcelo Tomé
“Eita negro! Quem foi que disse, que a gente não é gente? Quem foi esse demente, se tem olhos não vê...”. Conversar com Raquel Trindade (a Kambinda) é sempre uma honra e um desafio, pela densidade de história, espiritualidade e sabedoria que ela traz consigo em cada palavra, em cada gesto. Além de ser filha de quem é e uma das principais herdeiras artísticas do grande poeta negro comunista Solano Trindade. Para se ter uma idéia da responsabilidade, no longínquo mesmo ano de 1944, duas grandes figuras já escreviam algumas poucas e boas palavras sobre Solano. Para Drummond: “a leitura de seus versos deu-me confiança no Poeta que é capaz de escrever ‘Poema do homem’ e ‘O canto dos Palmares’. Há nesses versos uma força natural e uma voz individual, rica e ardente, que se confunde com a voz coletiva”. Para Abdias do Nascimento, fundador do Teatro Experimental do Negro e um dos protagonistas da Frente Negra Brasileira: “Solano Trindade é o brado da raça, o maior Poeta Negro do Brasil contemporâneo. Porque Solano Trindade não se encerrou na torre de marfim da arte pura e tampouco escreveu poesia negra com linguagem de ‘negro-branco’, desses que se envergonham de abordar o típico das gafieiras e das macumbas como legítimas expressões do anseio estético e da misteriosa espiritualidade negra. Ele é Negro, sente como Negro, e como tal cantou as dores, as alegrias e as aspirações libertárias do afro-brasileiro.”
Pois é: para o ano Solano completará seu centenário de nascimento. E as celebrações já começaram dias 21 e 22 de julho, na sua Embu das Artes, com uma reunião poderosa de grupos afro-populares de música, dança e poesia. Não pararão tão cedo, porque toda a imensa família Trindade de sangue e coração promete um 2008 cheio de festa e reflexão sobre a vida e obra do poeta. As iniciativas começam a pipocar (como o documentário “Imagens de uma vida simples”, feito pelos grupos periféricos NCA e Cia. Sansacroma), e o calendário a se preencher. Como ele gostava: sem dia nem hora pra terminar. Com a palavra agora Dna Raquel Trindade, sua herdeira artística. Num poema dedicado a ela, Solano já escrevia: “estou conservado no ritmo de meu povo / me tornei cantiga determinadamente / e nunca terei tempo de morrer”.
Dna. Raquel, fale um pouco de sua infância e da principal lembrança deixada por seu pai.
Tenho muitas boas lembranças de papai. Primeiro o quanto ele ficava assustado de ver outros pais batendo nas suas crianças. Dizia que ainda realizaria seu sonho de ver os direitos das crianças cumpridos. Teve até um dia em que ele fingiu me bater, e falava pra eu gritar e chorar pra brincar com o povo lá fora, que tinha tanto esse costume. Depois a preocupação que ele tinha com minha formação: a gente morava em Duque de Caxias e ele levava a gente pra ver a Orquestra Afro-Brasileira do Abigail Moura, o Teatro Experimental do Negro de Abdias do Nascimento, o Balé Afro de Mercedes Batista. Mas também íamos muito ao centro do Rio, na Pinacoteca, Belas Artes e no Teatro Municipal assistir ópera e música clássica. Ele queria que eu vivesse e conhecesse bem a cultura popular, mas também a ocidental e erudita. Dizia que não podia criticar nada sem conhecer. Papai falava: “trate de aprender porque o quê tá na mente é difícil de ser roubado, e eu não vou te deixar nada material”.
E como foi a chegada da família ao Rio em 1942?
Papai teve três cidades fortes em sua vida: Recife, Duque de Caxias e Embu das Artes. Papai chegou antes ao rio, e mamãe sabia que ele freqüentava muito o bar Vermelhinho (que era ponto de encontro de artistas e intelectuais de esquerda), então chegamos ao porto e ela foi ao bar. Grande Otelo deu o recado a papai, que foi nos buscar, e os amigos próximos cotizaram um aluguel de uma casa de fundos na Gamboa para nossa família. No Rio papai conseguiu realizar alguns sonhos como a criação do Teatro Popular Brasileiro (junto a minha mãe Margarida da Trindade e o sociólogo Edson Carneiro). Minha mãe ensinava as danças, e tinha também a Joana Martins, uma excelente secretária. Era um teatro feito por operários, empregadas domésticas, estudantes e comerciários, que se apresentava muito nas ruas, universidades, fez muita apresentação com a UNE.
E como Solano pensava essa relação entre arte e política?
Em Recife, junto ao escritor José Vicente de Lima e Barros Mulato em 1936, papai já tinha fundado a Frente Negra Pernambucana. No Rio filiou-se ao Partido Comunista, e as reuniões da célula Tiradentes eram em nossa pequena casa em Duque de Caxias. Papai nunca deixou de ser socialista e só deixou o Partidão, depois de muito tempo quando já estava em São Paulo, por duas razões: - não achava que o problema do negro era só econômico, mas dava ênfase à questão racial; - e não queria uma arte subordinada apenas às questões políticas, pois sua própria arte já era um exercício de libertação. Não queria pintar só a miséria do negro, mas falar de outras coisas, da parte lúdica.
E quanto a sua prisão em Duque de Caxias, em 1944?
Disseram que ele tinha armas em casa e a justificativa era o poema “Trem sujo da Leopoldina – tem gente com fome” e por ele ter assinado o manifesto Mangabeira. Chegaram à noite, Liberto [filho de Solano nascido às voltas com a guerra] era pequeno e estava com sarampo, entraram os homens armados até os dentes, papai estava só de cueca. Disse: “esperem, deixem eu só colocar uma roupa”. Eles reviraram tudo e não acharam arma nenhuma, papai não era capaz de matar uma mosca. Levaram os livros e a papelada dele, não falaram pra onde ele iria, deixaram ele incomunicável por uns dias. Mamãe foi de prisão em prisão, até que no presídio na Rua da Relação no centro do Rio, um policial negro que trabalhava lá lhe disse: “não diga que eu lhe falei, mas ele está aqui”. Passamos a noite do lado de fora da cadeia, no dia seguinte minha mãe que era uma paraibana braba conseguiu dobrar o delegado e falar com papai. Ele lhe disse: “fica calma Margarida que eu não estou sendo torturado”. Dias depois saiu.
Outra história dura foi a morte de seu irmão Chiquinho, né?
Isso já foi em 1964/1965. Em 64 a polícia foi em casa buscando Francisco Solano Trindade Filho, meu irmão. Encontraram ele empinando pipa. Estavam à procura dos outros 10 do grupo dos 11 do Brizola. Meu irmão disse que eles teriam que procurá-los. Diz que um rapaz disse a ele: “você vai ter que servir o exército não vai? Lá a gente conversa”. Em 1965 mamãe recebeu uma ligação, e ao confirmar que ele tinha ido ao exército, um sujeito disse do outro lado: “sim ele já foi e já morreu” Ela exigiu o corpo, que eles entregaram com um tiro no peito, um livro, dicionário de inglês e 10 cruzeiros. Eram as armas que ele tinha. Minha mãe não quis mexer nessa história, mas depois não podia nem ver homem fardado pela frente que tinha medo.
O trabalho do TPB continuou nas décadas de 1950/60? Como foi a vinda ao Embu?
O trabalho do teatro continuou seguindo seu lema: “pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo na forma de arte”. Seguiu fazendo apresentações pelo país, inclusive uma série na Polônia e Tchecoslováquia. No começo da década de 60 papai conheceu o escultor Assis, que o convidou pra vir pro Embu. Já estavam lá o Sakai, a Azteca e o Cássio M’Boi. Papai veio com todo o elenco do TPB e se apaixonou pelo Embu, sua terceira cidade. Ela começou a atrair muita gente e ficar conhecida no mundo todo. Até que em 1965, chateado com os “picaretas” e a comercialização que começava a aparecer na cidade, Solano foi morar na Vila Sônia e depois no Ferreira (bairros da periferia de São Paulo). Voltaria ao Embu mais duas vezes...
Pouco tempo depois ele morreu. Como foi sua morte e em que condições vocês continuam o trabalho?
Ele morreu no Rio de Janeiro em 1974. Antes disso tinha se adoentado, e sua casa tinha sido toda roubada no Embu. Mas é um mito dizer que ele morreu como indigente, pois na verdade foi bem cuidado e minha mãe e minha irmã Godiva fizeram um enterro decente pra ele, em Jacarepaguá. Em 1975 eu criei o Teatro Popular Solano Trindade, que continua firme até hoje seguindo o mesmo lema: “pesquisar na fonte...”. Seguimos passando os ensinamentos de pessoa a pessoa: são oficinas gratuitas para a população, trabalho com as crianças. Agora falta estrutura para cuidar e recuperar todo acervo dele, divulgar melhor sua obra. Eu também, como papai, estou triste com a cidade, com os políticos... Muita pessoa vem aqui pesquisar a cultura negra e mandam todos pra minha casa, mas não recebo por isso, falta dinheiro pra luz, tão cortando meu telefone... Apesar disso pretendemos fazer um centenário bem forte, meus filhos e netos estão cheios de projetos.
Há em alguns estados o “Salário de Griot” (como no Ceará e Pernambuco), que é uma conquista de pessoas com reconhecida sabedoria popular. Como foram suas experiências com instituições nesse sentido? Você chegou a dar aula um tempo na Unicamp...
Eu cheguei a dar aula na Unicamp, a partir de 1987, por convite de Antônio Nóbrega. Primeiro no Depto. de Dança, depois no de Artes Dramáticas a convite de Celso Nunes. Ministrei cursos sobre Teatro Negro no Brasil, sobre Folclore e Sincretismo Religioso Brasileiro para a Graduação. Como só tinha um negro em toda Graduação, pedi para dar um curso de extensão para funcionários, trabalhadores de fora e outros estudantes. Desse curso se originou o grupo Urucungos, Puítas e Quijenges, que segue vivo independente da universidade. Eu entrei nela como Técnico-Didata, depois fui promovida à Professora de Sabedoria Popular. Aí veio aquela pressão sutil de muitos professores com vários títulos de mestrado, doutorado... Não admitiam... Mas você me perguntou se eu toparia voltar, sim no caso de um curso teórico com apoio prático de alguém do meu grupo de cultura popular, para fazerem as danças etc.
É portanto a favor das cotas?
A favor das cotas pelas necessidades da época. Se não houvesse discriminação não seria. Só que tem um problema: o que eu estudei no primário na década de 1940 está faltando no ginásio de hoje: os professores não conseguem estudar, as crianças passam sem saber, o vestibular é cruel e são poucos os cursinhos populares (tem o Educafro, mas não é suficiente), e a maioria das famílias pobres que precisam da escola pública são negras. Precisa melhorar também a educação pública.
E como a senhora viu a lei 10.639, que obriga a inclusão de aulas sobre cultura afro-brasileira no currículo de todos os anos?
Vejo com bons olhos, mas me preocupa que os professores não conhecem o assunto. E pior que não ensinar é ensinar errado. Eu fico revoltada, por exemplo, quando vejo muita mãe pondo o nome de Dandara em suas filhas, sendo que Elesbão do Carmo Dandara foi um importante líder da Revolta dos Malês na Bahia em 1835, e não uma mulher (de Zumbi) no quilombo dos Palmares. As pessoas pensam que macumba é uma seita secreta, mas na verdade é um instrumento (uma espécie de atabaque pequeno), e macumbeiro é quem o toca. Muitos pensam que Teodoro Sampaio era branco etc.
Acredita que haja religião afro-brasileira, ou para senhora não houve desligamento a ser religado?
Chamar de religião (e não de seitas, essas coisas) é aceitável pelo respeito, mas é uma relação com a natureza, da qual a gente não pode se desligar nunca. Ossanha são as plantas, Ogum os minerais, Yemanja (cujas origens remontam o rio africano Yemoje) é filha de Olokum, que é o mar onde ela deságua.Oxum á a água doce, Nanã os lagos e as águas paradas. Então tudo tem ligação com a natureza, e os orixás são energias da natureza com as quais os homens se relacionam. Eu brincava com papai que se eu soubesse física, talvez eu entendesse mais dos orixás.
E como vê os avanços dessas novas tecnologias de hoje?
O avanço da tecnologia não atrapalha. Só não dá pra gente como eu, do meu tempo, acompanhar. O problema é esse “pseudo-progresso” que tem gerado destruição da natureza. A internet é boa, mas tá cheia de mentiras também (como que papai foi fundador do TEN e morreu como indigente).
Uma curiosidade: por que Raquel Trindade, a Kambinda?
Porque quando eu era jovem e ganhava prêmios por minhas pinturas, falavam que eu ganhava porque era filha de Solano. Aí resolvi assinar Raquel Kambinda. Que é um tipo de negro do sul da África, e uma região de Angola chamada Kabinda. É uma negra velha da umbanda também, que dá bons conselhos. Muito embora eu seja do Candomblé, nação Kêto, filha de Obaluayê e Oyá.
Danilo Siqueira Dara é historiador.
Marcelo Tomé é pintor, dançarino e produtor, além de neto adotivo de Dna. Raquel.
Quem é Raquel Trindade Souza?
Raquel Trindade, a Kambinda, é a filha mais velha do grande poeta negro comunista Solano Trindade. Pintora, dançarina, coreógrafa, grande conhecedora da história e cultura afro-brasileira, é considerada por muitos uma das maiores griots (guardiões do conhecimento) vivas no Brasil. Fundadora do Teatro Popular Solano Trindade e da Nação Kambinda de Maracatu, sempre ministrou cursos e oficinas livres em vários cantos do país, principalmente no Embu das Artes onde segue enraizada. Casou-se oito vezes, amores que lhes deram três filhos (o compositor Vitor da Trindade, a artista culinária Regina Célia e a escritora dançarina Dadá) e sete netos de sangue (dentre os quais o rapper Zinho Trindade e o percussionista Manuel). Adotou pelo menos mais três netos de coração, todos três artistas como o poeta e “secretário” pra todas as horas Marcelo Tomé. Autora de Embu: Aldeia de M’Boy (Noohva América), atualmente ela administra o TPST e seus projetos, além de estar elaborando um novo livro sobre danças de origem bânto chamado “Urucungos, Puítas e Quijenges”, e coordenando as atividades do centenário de Solano. E-mail: tpstrindade@yahoo.com.br .
Danilo Dara
Marcelo Tomé
“Eita negro! Quem foi que disse, que a gente não é gente? Quem foi esse demente, se tem olhos não vê...”. Conversar com Raquel Trindade (a Kambinda) é sempre uma honra e um desafio, pela densidade de história, espiritualidade e sabedoria que ela traz consigo em cada palavra, em cada gesto. Além de ser filha de quem é e uma das principais herdeiras artísticas do grande poeta negro comunista Solano Trindade. Para se ter uma idéia da responsabilidade, no longínquo mesmo ano de 1944, duas grandes figuras já escreviam algumas poucas e boas palavras sobre Solano. Para Drummond: “a leitura de seus versos deu-me confiança no Poeta que é capaz de escrever ‘Poema do homem’ e ‘O canto dos Palmares’. Há nesses versos uma força natural e uma voz individual, rica e ardente, que se confunde com a voz coletiva”. Para Abdias do Nascimento, fundador do Teatro Experimental do Negro e um dos protagonistas da Frente Negra Brasileira: “Solano Trindade é o brado da raça, o maior Poeta Negro do Brasil contemporâneo. Porque Solano Trindade não se encerrou na torre de marfim da arte pura e tampouco escreveu poesia negra com linguagem de ‘negro-branco’, desses que se envergonham de abordar o típico das gafieiras e das macumbas como legítimas expressões do anseio estético e da misteriosa espiritualidade negra. Ele é Negro, sente como Negro, e como tal cantou as dores, as alegrias e as aspirações libertárias do afro-brasileiro.”
Pois é: para o ano Solano completará seu centenário de nascimento. E as celebrações já começaram dias 21 e 22 de julho, na sua Embu das Artes, com uma reunião poderosa de grupos afro-populares de música, dança e poesia. Não pararão tão cedo, porque toda a imensa família Trindade de sangue e coração promete um 2008 cheio de festa e reflexão sobre a vida e obra do poeta. As iniciativas começam a pipocar (como o documentário “Imagens de uma vida simples”, feito pelos grupos periféricos NCA e Cia. Sansacroma), e o calendário a se preencher. Como ele gostava: sem dia nem hora pra terminar. Com a palavra agora Dna Raquel Trindade, sua herdeira artística. Num poema dedicado a ela, Solano já escrevia: “estou conservado no ritmo de meu povo / me tornei cantiga determinadamente / e nunca terei tempo de morrer”.
Dna. Raquel, fale um pouco de sua infância e da principal lembrança deixada por seu pai.
Tenho muitas boas lembranças de papai. Primeiro o quanto ele ficava assustado de ver outros pais batendo nas suas crianças. Dizia que ainda realizaria seu sonho de ver os direitos das crianças cumpridos. Teve até um dia em que ele fingiu me bater, e falava pra eu gritar e chorar pra brincar com o povo lá fora, que tinha tanto esse costume. Depois a preocupação que ele tinha com minha formação: a gente morava em Duque de Caxias e ele levava a gente pra ver a Orquestra Afro-Brasileira do Abigail Moura, o Teatro Experimental do Negro de Abdias do Nascimento, o Balé Afro de Mercedes Batista. Mas também íamos muito ao centro do Rio, na Pinacoteca, Belas Artes e no Teatro Municipal assistir ópera e música clássica. Ele queria que eu vivesse e conhecesse bem a cultura popular, mas também a ocidental e erudita. Dizia que não podia criticar nada sem conhecer. Papai falava: “trate de aprender porque o quê tá na mente é difícil de ser roubado, e eu não vou te deixar nada material”.
E como foi a chegada da família ao Rio em 1942?
Papai teve três cidades fortes em sua vida: Recife, Duque de Caxias e Embu das Artes. Papai chegou antes ao rio, e mamãe sabia que ele freqüentava muito o bar Vermelhinho (que era ponto de encontro de artistas e intelectuais de esquerda), então chegamos ao porto e ela foi ao bar. Grande Otelo deu o recado a papai, que foi nos buscar, e os amigos próximos cotizaram um aluguel de uma casa de fundos na Gamboa para nossa família. No Rio papai conseguiu realizar alguns sonhos como a criação do Teatro Popular Brasileiro (junto a minha mãe Margarida da Trindade e o sociólogo Edson Carneiro). Minha mãe ensinava as danças, e tinha também a Joana Martins, uma excelente secretária. Era um teatro feito por operários, empregadas domésticas, estudantes e comerciários, que se apresentava muito nas ruas, universidades, fez muita apresentação com a UNE.
E como Solano pensava essa relação entre arte e política?
Em Recife, junto ao escritor José Vicente de Lima e Barros Mulato em 1936, papai já tinha fundado a Frente Negra Pernambucana. No Rio filiou-se ao Partido Comunista, e as reuniões da célula Tiradentes eram em nossa pequena casa em Duque de Caxias. Papai nunca deixou de ser socialista e só deixou o Partidão, depois de muito tempo quando já estava em São Paulo, por duas razões: - não achava que o problema do negro era só econômico, mas dava ênfase à questão racial; - e não queria uma arte subordinada apenas às questões políticas, pois sua própria arte já era um exercício de libertação. Não queria pintar só a miséria do negro, mas falar de outras coisas, da parte lúdica.
E quanto a sua prisão em Duque de Caxias, em 1944?
Disseram que ele tinha armas em casa e a justificativa era o poema “Trem sujo da Leopoldina – tem gente com fome” e por ele ter assinado o manifesto Mangabeira. Chegaram à noite, Liberto [filho de Solano nascido às voltas com a guerra] era pequeno e estava com sarampo, entraram os homens armados até os dentes, papai estava só de cueca. Disse: “esperem, deixem eu só colocar uma roupa”. Eles reviraram tudo e não acharam arma nenhuma, papai não era capaz de matar uma mosca. Levaram os livros e a papelada dele, não falaram pra onde ele iria, deixaram ele incomunicável por uns dias. Mamãe foi de prisão em prisão, até que no presídio na Rua da Relação no centro do Rio, um policial negro que trabalhava lá lhe disse: “não diga que eu lhe falei, mas ele está aqui”. Passamos a noite do lado de fora da cadeia, no dia seguinte minha mãe que era uma paraibana braba conseguiu dobrar o delegado e falar com papai. Ele lhe disse: “fica calma Margarida que eu não estou sendo torturado”. Dias depois saiu.
Outra história dura foi a morte de seu irmão Chiquinho, né?
Isso já foi em 1964/1965. Em 64 a polícia foi em casa buscando Francisco Solano Trindade Filho, meu irmão. Encontraram ele empinando pipa. Estavam à procura dos outros 10 do grupo dos 11 do Brizola. Meu irmão disse que eles teriam que procurá-los. Diz que um rapaz disse a ele: “você vai ter que servir o exército não vai? Lá a gente conversa”. Em 1965 mamãe recebeu uma ligação, e ao confirmar que ele tinha ido ao exército, um sujeito disse do outro lado: “sim ele já foi e já morreu” Ela exigiu o corpo, que eles entregaram com um tiro no peito, um livro, dicionário de inglês e 10 cruzeiros. Eram as armas que ele tinha. Minha mãe não quis mexer nessa história, mas depois não podia nem ver homem fardado pela frente que tinha medo.
O trabalho do TPB continuou nas décadas de 1950/60? Como foi a vinda ao Embu?
O trabalho do teatro continuou seguindo seu lema: “pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo na forma de arte”. Seguiu fazendo apresentações pelo país, inclusive uma série na Polônia e Tchecoslováquia. No começo da década de 60 papai conheceu o escultor Assis, que o convidou pra vir pro Embu. Já estavam lá o Sakai, a Azteca e o Cássio M’Boi. Papai veio com todo o elenco do TPB e se apaixonou pelo Embu, sua terceira cidade. Ela começou a atrair muita gente e ficar conhecida no mundo todo. Até que em 1965, chateado com os “picaretas” e a comercialização que começava a aparecer na cidade, Solano foi morar na Vila Sônia e depois no Ferreira (bairros da periferia de São Paulo). Voltaria ao Embu mais duas vezes...
Pouco tempo depois ele morreu. Como foi sua morte e em que condições vocês continuam o trabalho?
Ele morreu no Rio de Janeiro em 1974. Antes disso tinha se adoentado, e sua casa tinha sido toda roubada no Embu. Mas é um mito dizer que ele morreu como indigente, pois na verdade foi bem cuidado e minha mãe e minha irmã Godiva fizeram um enterro decente pra ele, em Jacarepaguá. Em 1975 eu criei o Teatro Popular Solano Trindade, que continua firme até hoje seguindo o mesmo lema: “pesquisar na fonte...”. Seguimos passando os ensinamentos de pessoa a pessoa: são oficinas gratuitas para a população, trabalho com as crianças. Agora falta estrutura para cuidar e recuperar todo acervo dele, divulgar melhor sua obra. Eu também, como papai, estou triste com a cidade, com os políticos... Muita pessoa vem aqui pesquisar a cultura negra e mandam todos pra minha casa, mas não recebo por isso, falta dinheiro pra luz, tão cortando meu telefone... Apesar disso pretendemos fazer um centenário bem forte, meus filhos e netos estão cheios de projetos.
Há em alguns estados o “Salário de Griot” (como no Ceará e Pernambuco), que é uma conquista de pessoas com reconhecida sabedoria popular. Como foram suas experiências com instituições nesse sentido? Você chegou a dar aula um tempo na Unicamp...
Eu cheguei a dar aula na Unicamp, a partir de 1987, por convite de Antônio Nóbrega. Primeiro no Depto. de Dança, depois no de Artes Dramáticas a convite de Celso Nunes. Ministrei cursos sobre Teatro Negro no Brasil, sobre Folclore e Sincretismo Religioso Brasileiro para a Graduação. Como só tinha um negro em toda Graduação, pedi para dar um curso de extensão para funcionários, trabalhadores de fora e outros estudantes. Desse curso se originou o grupo Urucungos, Puítas e Quijenges, que segue vivo independente da universidade. Eu entrei nela como Técnico-Didata, depois fui promovida à Professora de Sabedoria Popular. Aí veio aquela pressão sutil de muitos professores com vários títulos de mestrado, doutorado... Não admitiam... Mas você me perguntou se eu toparia voltar, sim no caso de um curso teórico com apoio prático de alguém do meu grupo de cultura popular, para fazerem as danças etc.
É portanto a favor das cotas?
A favor das cotas pelas necessidades da época. Se não houvesse discriminação não seria. Só que tem um problema: o que eu estudei no primário na década de 1940 está faltando no ginásio de hoje: os professores não conseguem estudar, as crianças passam sem saber, o vestibular é cruel e são poucos os cursinhos populares (tem o Educafro, mas não é suficiente), e a maioria das famílias pobres que precisam da escola pública são negras. Precisa melhorar também a educação pública.
E como a senhora viu a lei 10.639, que obriga a inclusão de aulas sobre cultura afro-brasileira no currículo de todos os anos?
Vejo com bons olhos, mas me preocupa que os professores não conhecem o assunto. E pior que não ensinar é ensinar errado. Eu fico revoltada, por exemplo, quando vejo muita mãe pondo o nome de Dandara em suas filhas, sendo que Elesbão do Carmo Dandara foi um importante líder da Revolta dos Malês na Bahia em 1835, e não uma mulher (de Zumbi) no quilombo dos Palmares. As pessoas pensam que macumba é uma seita secreta, mas na verdade é um instrumento (uma espécie de atabaque pequeno), e macumbeiro é quem o toca. Muitos pensam que Teodoro Sampaio era branco etc.
Acredita que haja religião afro-brasileira, ou para senhora não houve desligamento a ser religado?
Chamar de religião (e não de seitas, essas coisas) é aceitável pelo respeito, mas é uma relação com a natureza, da qual a gente não pode se desligar nunca. Ossanha são as plantas, Ogum os minerais, Yemanja (cujas origens remontam o rio africano Yemoje) é filha de Olokum, que é o mar onde ela deságua.Oxum á a água doce, Nanã os lagos e as águas paradas. Então tudo tem ligação com a natureza, e os orixás são energias da natureza com as quais os homens se relacionam. Eu brincava com papai que se eu soubesse física, talvez eu entendesse mais dos orixás.
E como vê os avanços dessas novas tecnologias de hoje?
O avanço da tecnologia não atrapalha. Só não dá pra gente como eu, do meu tempo, acompanhar. O problema é esse “pseudo-progresso” que tem gerado destruição da natureza. A internet é boa, mas tá cheia de mentiras também (como que papai foi fundador do TEN e morreu como indigente).
Uma curiosidade: por que Raquel Trindade, a Kambinda?
Porque quando eu era jovem e ganhava prêmios por minhas pinturas, falavam que eu ganhava porque era filha de Solano. Aí resolvi assinar Raquel Kambinda. Que é um tipo de negro do sul da África, e uma região de Angola chamada Kabinda. É uma negra velha da umbanda também, que dá bons conselhos. Muito embora eu seja do Candomblé, nação Kêto, filha de Obaluayê e Oyá.
Danilo Siqueira Dara é historiador.
Marcelo Tomé é pintor, dançarino e produtor, além de neto adotivo de Dna. Raquel.
Quem é Raquel Trindade Souza?
Raquel Trindade, a Kambinda, é a filha mais velha do grande poeta negro comunista Solano Trindade. Pintora, dançarina, coreógrafa, grande conhecedora da história e cultura afro-brasileira, é considerada por muitos uma das maiores griots (guardiões do conhecimento) vivas no Brasil. Fundadora do Teatro Popular Solano Trindade e da Nação Kambinda de Maracatu, sempre ministrou cursos e oficinas livres em vários cantos do país, principalmente no Embu das Artes onde segue enraizada. Casou-se oito vezes, amores que lhes deram três filhos (o compositor Vitor da Trindade, a artista culinária Regina Célia e a escritora dançarina Dadá) e sete netos de sangue (dentre os quais o rapper Zinho Trindade e o percussionista Manuel). Adotou pelo menos mais três netos de coração, todos três artistas como o poeta e “secretário” pra todas as horas Marcelo Tomé. Autora de Embu: Aldeia de M’Boy (Noohva América), atualmente ela administra o TPST e seus projetos, além de estar elaborando um novo livro sobre danças de origem bânto chamado “Urucungos, Puítas e Quijenges”, e coordenando as atividades do centenário de Solano. E-mail: tpstrindade@yahoo.com.br .
Suburbanos convictos: pelas periferias do Brasil
Os guerreiros do hip-hop Alessandro Buzo e GOG falam de suas trajetórias no movimento e seus projetos futuros na semana de lançamento de "Suburbano convicto - pelas periferias do Brasil" e "Guerreira", livros respectivamente organizado e escrito por Buzo. GOG estará em São Paulo e fará show no acampamento João Cândido do MTST na Vila Calu.
Danilo Dara
A trajetória de vocês no hip-hop...
GOG - O hip-hop no DF teve sua origem nos anos de 81/82, faço parte dessa primeira geração. Tudo foi mágico. Muita coisa que imaginávamos hoje está acontecendo, algumas boas, outras nem tanto. Mas o fator mais marcante do hip-hop na minha vida é o poder de transformação que ele tem no seu discurso, no seu método. Sou uma eterna construção, não sei de nada totalmente, aprendo todo dia mais um pouco, na tentativa de ser uma pessoal útil ao planeta.
BUZO - Eu entrei no hip-hop via 5o elemento (conhecimento), antes só curtia as músicas. Depois do primeiro livro eu fui indo em vários eventos e conhecendo cada vez mais os grupos e pessoas importantes no hip-hop como o Nino Brown. Depois passei a ser colunista de sites (Enraizados, Rap Nacional e Real Hip Hop), nasceu o evento “Favela toma conta”, passei a ser colunista e depois repórter da revista Rap Brasil. Hoje respiro rap nacional.
Como surgiu o "Favela toma conta", Buzo, e em que pé ele está?
B - Surgiu na rua que eu moro, vi uns 15 moleques jogando basquete no posto, a tabela era um aro de bicicleta e disse: falta tudo aqui, quem sabe um evento ajuda a dar uma animada. Fiz os dois primeiros na rua de casa e depois em outros 3 lugares no bairro do Itaim Paulista, extremo leste de São Paulo. Arrumo sozinho quase tudo, atrações, estrutura, despesas. Não tenho uma equipe, não que não queira, mas muitos querem dividir antes mesmo de somar. O evento aconteceu 3 vezes só esse ano de 2007, dia 12 de outubro acontece a 14a edição que será especial "dia das crianças", com distribuição de brinquedos, pelo 4o ano nesse dia especial. Tudo isso sem um apoio fixo, sem quase nada de grana, o que requer muitos contatos, isso eu tenho.
Sobre a relação de vocês com a literatura.
G - Minha mãe foi professora do ensino fundamental, meu pai perambulou por várias profissões: borracheiro, porteiro, corretor de imóveis. O incentivo à leitura e à escrita foi um dado unânime na criação que os dois me deram. Desde criança participava de ditados, muito caderno de caligrafia, e leitura. Isso hoje é o que me dá base para exercer a minha profissão. Tenho muita facilidade, posso dizer até uma cumplicidade com a leitura e a escrita.
B - Conheci a literatura pequeno porque minha mãe sempre estava lendo e comprava livros e gibis pra mim e pro meu irmão, passei a escrever em fanzines e jornais de bairro. Em 2000 lancei independente meu primeiro livro e não parei mais, foram 4 livros independentes.
Ainda sobre formação, queria que você GOG falasse um pouco da sua relação com o marxismo.
G - A teoria marxista é o solo em que piso. Sem ela não sei o que seria do GOG, dos seus argumentos, dos seus textos. A minha aproximação com o marxismo data dos meus tempos de Faculdade, veio então um aprofundamento da leitura, nos debates, nos questionamentos e a certeza de que o solo era realmente firme. O materialismo dialético é algo que me fascina e que me mantém longe de muitas doutrinas que fazem da transitoriedade do homem na terra e da falta de respostas uma jogatina sem fim. Vejo claramente que a falta de leitura e historicidade de vários integrantes da esquerda, principalmente a brasileira, é um fator decisivo na tomada de decisões equivocadas e que consequentemente fortalecem a elite com argumentos falsos, mas superficialmente convincentes, de que o socialismo e toda a teoria marxista é coisa do passado, ultrapassada. Hoje a grande questão é definir: o que é ser de esquerda? A minha resposta é dada nos meus textos e no meu modo de agir.
Por falar em faculdade, quase 100% das vagas em cadeias públicas não-especiais são para pretos e pobres? São a favor das cotas?
B - Se rico fosse preso, ia faltar cadeia. Mas um rico preso, desvia mais dinheiro que o valor que todos detentos de uma penitenciária juntos roubaram; desvio de verba, superfaturamento, e quem paga é o povo. Lalau desviou 169 milhões e está em prisão domiciliar, deixa ele morrer na cadeia, mas não, 169 milhões paga muita gente, compra liberdade.
G - Olha, falo disso e começo a me arrepiar todo. É porque essa leitura me dá a certeza que eles (a elite racista e preconceituosa) estão ganhando o jogo, e de goleada. E pior, no Brasil há mais de 500 anos, e o jogo ainda demora pra ser virado. Sou a favor de ações, políticas afirmativas, de tomada de decisões sérias, marcação de espaço e definição de quem é quem nesse jogo (luta de classes). Percebo que o pior inimigo é o que está próximo, aliado, mas fazendo o jogo do inimigo.
Como vocês pensam a proximidade entre o hip-hop e outros movimentos sociais.
G - Não vejo outro caminho para o hip-hop e os demais movimentos sociais que não seja o da interação, do diálogo, da utilização das redes de comunicação já montadas. Mas falta algo que proporcione essa aproximação. Talvez seja todos admitirem que ninguém é dono da verdade.
B - Penso que temos que correr juntos, todos falamos a mesma língua e lutamos por ideais iguais ou parecidos. Eu sou branco e me identifico 100% com o movimento negro, porque sou pobre e passo vários problemas de ordem financeira, descaso e preconceito. Não racial, mas é preconceito também, minha mulher é negra e amo ela, nosso filho é mestiço. A luta não tem que ser racial, tem que ser de classe social, combater a elite que domina e massacra. Me identifico com os sem-terra, sem-teto, porque sou um também, moro numa casa de 2 cômodos com córrego fedendo atrás e tem gente que só vê minhas realizações e pensa que sou rico. Só tenho disposição em dobro, acredito nos meus projetos antes de todo mundo.
Você esteve recentemente no congresso Nacional do MST, e no acampamento João Cândido do MTST, onde fará um show este sábado. É um rapper afro-comunista?
G - Não tenho definição. É o que eu sinto e os outros percebem. Não adianta um discurso engajado, sem ações que o fortaleça. Sou um ser humano em construção, todo dia uma parede é erguida, outra derrubada, mas sem mexer nos meus pilares, que são pedras fundamentais do meu pensamento. Logo visitar e manter uma relação de parceria, respeito e solidariedade com o MST e com o MTST são para mim sinais claros que a luta continua, de que não estou só, tenho parceiros e que a realidade pode ser transformada com postura, atitude, organização e determinação. Ouvir os acampados do João Cândido gritando o verso "Revolucionários do Brasil: fogo no pavio, fogo no pavio!" entoado como grito de ordem, de guerra, de melhoria por milhares de pessoas que realmente acreditam na transformação foi algo que me deixou muito pensativo, feliz e cada vez mais concentrado na minha caminhada que sempre trabalhei para correr pelo certo.
E a melhor forma de correr entre os que prometem Reino dos Céus e a Cidade de Deus na Terra, armados de diversos meios?
G - Estar sempre atento. Eles possuem armas poderosas e não vão se entregar. Mas os passos a serem tomados pelo povo têm que ser apresentados com sapiência, senão vira banho de sangue.
B - Sinceramente, acredito em quem trabalha pelo coletivo e corre atrás sem esperar cair do céu. Do céu só cai chuva e infelizmente às vezes avião. Terra prometida não existe, mude a sua própria quebrada, sua rua, para melhor e estará fazendo sua parte. A revista Rap Brasil, por exemplo, é a única revista de rap com circulação nacional na banca. Temos que consumir nossos produtos, senão a editora tira a revista de circulação. Quem faz a revista ama o rap, mas a editora quer saber de números. Acho que tudo na vida temos que fazer bem feito, senão seremos mais um. Meu blog (http://www.suburbanoconvicto.blogger.com.br/) é atualizado todo dia e nem por isso abrimos para assuntos vazios. O conteúdo é de qualidade, isso faz a diferença, só assim mostraremos o que de melhor aparece nas periferias do Brasil.
Conta mais GOG dessa treta em defesa do Piauí, contra a Phillips e o movimento "Cansei".
G - O Movimento "Cansei" parece até uma piada, mas é na verdade muito mal intencionado. Não pelos artistas que assinaram o "Manifesto", mas pelos seus idealizadores. Quem tem um pouco de conhecimento histórico sabe da semelhança entre esse movimento e as manifestações por um "Brasil melhor” que aconteceram nos anos 60, mais precisamente em 64, pouco antes do golpe militar. Eles têm em mente, como estratégia, alimentar esse sentimento, desestabilizar o governo e a sociedade. Não se conformam em ter alguém de ascensão popular como chefe maior do nosso país. Não estou nem aí pro boicote deles, tenho meu povo, meu público e meu espaço, dignos e conquistados com trabalho e seriedade. Agora, o Sr. Paulo Zottolo vai ouvir! Já gravei “Direito de Resposta”, terminamos o vídeo e estaremos em breve entregando nossa versão dos fatos ao governador do Piauí, Wellington Dias. Outra cópia será enviada ao presidente da Philips na América Latina. Isso não pode passar batido. Fui gerado no Piauí. Minha família é toda do estado, embora acredite que todos os brasileiros deveriam se manifestar. Estou fazendo o que acredito.
Queria que você Buzo falasse da idéia central do seminário "Cultura e pensamentos livres", que está organizando junto ao grupo Epidemia em São Paulo e no Ceará, e inclusive o GOG também vai participar.
B - A idéia central é promover debates (palestras), mesclando pessoas da periferia com acadêmicos, pessoas de outras classes sociais, para que um veja o outro e vice-versa. Trocar mesmo, não podemos nos fechar. Mas isso não quer dizer se vender, quer dizer mostrar o nosso talento e chamar quem pode ajudar, financeiramente ou não, para somar. Se um cineasta pode ir fazer uma oficina na minha quebrada, isso me interessa, não só a grana dele, o seminário vai ser útil para misturar as classes.
Como você vê a ampliação dos espaços culturais nas quebradas? O que sugere pra avançarmos mais?
B - Montei a Biblioteca Comunitária Suburbano Convicto há dois anos e hoje ela funciona sozinha, sem depender da minha presença: olha o progresso. Quanto aos cineclubes populares acho fantástico: teatro e cinema tem que ter na periferia também. Hoje acreditamos que podemos fazer literatura, cinema, teatro, e vários lokos estão fazendo. Eu tô nesse bonde, pretendo fazer alguma coisa em 2008, uns documentários, trabalho numa produtora de vídeo (DGT Filmes) e lá está sendo minha escola. Acho que para avançarmos mais, temos que chamar cada vez mais gente para se envolver, criar interesse e buscar parceiros financeiros, colocar os projetos no papel e correr atrás. Mas pode ter certeza, a luta só acaba quando o ultimo de nós cair.
E a idéia da coletânea "Suburbano convicto - pelas periferias do Brasil" surgiu como?
B - Faço parte do núcleo de literatura periférica da Ação Educativa. Quando num de nossos encontros o Eleílson disse que a Ação apoiaria alguns livros, sugeri a coletânea, convidei algumas pessoas e outras apareceram naturalmente. Todos os passos do livro foram acompanhadas por todos via e-mail coletivo, vamos lançar dia 25/09 em São Paulo e a idéia é fazer em alguns dos outros 6 estados envolvidos. Vamos ver se conseguimos apoio pra isso.
G - Quando recebi o convite, disse que na realidade era uma convocação. Aceitei no primeiro momento e me confesso muito ansioso para o lançamento, as ações que vão ser tomadas e possibilidades de acesso às comunidades que nos será proporcionado. Temos que trabalhar muito. Tenho certeza que o time é de primeira.
Quais seus outros principais projetos atuais?
B - Lançar meu livro "Guerreira" dia 05/10 pela Global Editora; terminar a correção do livro: “Do conto à poesia”, que pretendo lançar em 2008; finalizar o outro que estou escrevendo: "Profissão MC". De vida é comprar uma casa para minha família, pra isso luto tanto. Continuar fazendo as coisas que tenho feito já ta de bom tamanho.
G – Em relação ao rap, na realidade não somos um grupo, somos uma família formada por várias pessoas com proximidade de pensamentos. O DJ Tiago, Rapadura e o Lindomar 3L estão com seus discos sendo produzidos e logo, logo sairão pelos quatro cantos do Brasil, apresentando suas propostas. E eu GOG estarei garimpando novos talentos para me acompanhar nos palcos da vida. Esse processo já aconteceu com o grupo A Família. Acabei de finalizar o clipe de “Cavalo sem dono selvagem”, tentando mostrar e provar que muito pouca coisa mudou, que a estratégia do sistema é outra e que a maldade continua a mesma. E meu primeiro DVD, “Cartão-Postal-Bomba”, está em fase final de edição. Estamos trabalhando dia e noite para que chegue às mãos dos guerreiros e guerreiras em dezembro. Mas a prioridade é fazer um trabalho de qualidade, que dê orgulho a quem assistir.
Danilo Dara é historiador.
Quem é Alessandro Buzo?
Nascido na capital, cresceu no Itaim Paulista (extremo leste) e tem 35 anos. É escritor, arte-educador, agente cultural. Em 2002, publicou de forma independente seu primeiro livro, “O Trem - Baseado em Fatos Reais”, depois veio o fanzine “Boletim do Kaos”, semanal, gratuito (atualmente na edição 148º ). Participou de coletâneas de “Literatura Marginal” da Caros Amigos e “Rastilho de Pólvora” da Cooperifa, e vieram outros livros independentes como “O Trem - Contestando a Versão Oficial” e “Guerreira” (agora relançado pela Global). Colunista de sites voltados ao hip-hop (Enraizados, Rap Nacional e Real Hip Hop), é também repórter da revista Rap Brasil e organiza o evento “Favela toma conta” na sua quebrada. Mais info: http://www.suburbanoconvicto.blogger.com.br/ .
Quem é GOG?
Genival Oliveira Gonçalves, conhecido nacionalmente pela sigla GOG, é considerado um dos grandes pilares da cultura hip-hop nacional. Nascido e criado na periferia de Brasília, filho dos nordestinos Sebastiana e Genésio Gonçalves – seus mestres -, desde os tempos do break em 1982 sua originalidade poética, militância política e força rítmica resultaram numa potente família ao seu lado. Já lançou em sua carreira mais de 8 discos, entre eles “CPI da Favela” (2000), “Tarja Preta” (2004) e o último “Aviso às gerações” (2007). Hoje coordena o projeto Só Balanço, núcleo que comporta um selo, um estúdio e duas lojas no Distrito Federal. Atualmente GOG tem como parceiros mais próximos, independente de sua carreira com os DJ Tiago, Rapadura e Lindomar 3L, os rappers engajados Demis Preto Realista, Gato Preto, Crônica e o DJ Bira, que formam o grupo “A Família”. Para o fim de ano GOG prepara seu primeiro DVD, “Cartão-Postal-Bomba”.
DIREITO DE RESPOSTA - GOG (2007)
1
Meu pai, minha mãe, tia Helena, minhas primas pequenas,
Meus tios, primos, vizinhos, Povo forte nordestino
Irados, inconformados, agressões ao Estado
Que meus ancestrais escolheram, onde fomos criados
2
Pois bem, Sr. Paulo Zottolo, ouça a voz do Crioulo
Você que sempre comeu a maior fatia do bolo
Sedução, charme, Segredos, cifras milionárias
Valor econômico, Executivo capa da “Caras”
3
Imagino as piadas de saguão, e no avião
Na reunião, com os “puxa saco” de plantão
Oh, Se empanturrou com dólares no bolso
Falou o que quis, encare agora a corda no pescoço
4
Vai passar por maus bocados, produtos boicotados
Chamado às pressas na matriz andam preocupados
Televisores quebrados na manifestação da praça
Philips, Walita na minha casa nem de graça
POR AMOR, POR AMOR,
O GRITO DO GLADIADOR!
POR AMOR, POR AMOR,
O GRITO CONTRA O OPRESSOR!
1
Sei o que moveu seu total irado desprezo
Julgava meu amado Piauí indefeso
Falaria, humilharia e sairia ileso
Surpreso? Cruzado, direto, sinta o peso
2
Balançou, e já entrou na dança das cadeiras
Carta de demissão, é manhã de segunda feira
Do seu lap top caixa de mensagens não acessa mais
Chuva de críticas, cara na capa dos jornais
3
Quebrou o jarro, capitalismo gigante dos pés de barro
Das favelas daqui, quer sair, acelere seu carro
Persona non grata, desprezo fere ou mata
Léguas pra buscar água contaminada na lata
4
De Monte Alegre a Floriano rumo a Luis Correia
Tratamento vip pros “cabra de peia”, golpeia
Que não respeita a luta diária suada alheia
Hip Hop 100 por cento quatro elementos na veia
POR AMOR, POR AMOR,
O GRITO DO GLADIADOR!
POR AMOR, POR AMOR,
O GRITO CONTRA O OPRESSOR!
1
“Nem 1 milhão de Lâmpadas florescentes, incandescentes
Iluminariam sua mente doente, demente
Vou em frente, lado a lado com os bolsões de pobreza
Que dó da sua fraqueza, sinto o calor da vela acesa
2
Cansei das falcatruas montadas por você e seus sócios
Elementar derrubar quem atrapalhou seus negócios
Tv digital vitória japonesa, Derrota holandesa,
Azedaram seu banquete já quente na mesa
3
Engenheiro, adepto do topa tudo por dinheiro
Cansei dos juros altos coletivo cheio
Do que vale mapas, fotos de favelas na luxuosa sala
Se a sua responsabilidade social é falha
4
As classes D e E declaram-se oposição
A estratégia naufragou levando ambição
Em apenas uma linha definir você?
Motivo de alegria da Sansung e da LG
POR AMOR, POR AMOR,
O GRITO DO GLADIADOR!
POR AMOR, POR AMOR,
O GRITO CONTRA O OPRESSOR!
Danilo Dara
A trajetória de vocês no hip-hop...
GOG - O hip-hop no DF teve sua origem nos anos de 81/82, faço parte dessa primeira geração. Tudo foi mágico. Muita coisa que imaginávamos hoje está acontecendo, algumas boas, outras nem tanto. Mas o fator mais marcante do hip-hop na minha vida é o poder de transformação que ele tem no seu discurso, no seu método. Sou uma eterna construção, não sei de nada totalmente, aprendo todo dia mais um pouco, na tentativa de ser uma pessoal útil ao planeta.
BUZO - Eu entrei no hip-hop via 5o elemento (conhecimento), antes só curtia as músicas. Depois do primeiro livro eu fui indo em vários eventos e conhecendo cada vez mais os grupos e pessoas importantes no hip-hop como o Nino Brown. Depois passei a ser colunista de sites (Enraizados, Rap Nacional e Real Hip Hop), nasceu o evento “Favela toma conta”, passei a ser colunista e depois repórter da revista Rap Brasil. Hoje respiro rap nacional.
Como surgiu o "Favela toma conta", Buzo, e em que pé ele está?
B - Surgiu na rua que eu moro, vi uns 15 moleques jogando basquete no posto, a tabela era um aro de bicicleta e disse: falta tudo aqui, quem sabe um evento ajuda a dar uma animada. Fiz os dois primeiros na rua de casa e depois em outros 3 lugares no bairro do Itaim Paulista, extremo leste de São Paulo. Arrumo sozinho quase tudo, atrações, estrutura, despesas. Não tenho uma equipe, não que não queira, mas muitos querem dividir antes mesmo de somar. O evento aconteceu 3 vezes só esse ano de 2007, dia 12 de outubro acontece a 14a edição que será especial "dia das crianças", com distribuição de brinquedos, pelo 4o ano nesse dia especial. Tudo isso sem um apoio fixo, sem quase nada de grana, o que requer muitos contatos, isso eu tenho.
Sobre a relação de vocês com a literatura.
G - Minha mãe foi professora do ensino fundamental, meu pai perambulou por várias profissões: borracheiro, porteiro, corretor de imóveis. O incentivo à leitura e à escrita foi um dado unânime na criação que os dois me deram. Desde criança participava de ditados, muito caderno de caligrafia, e leitura. Isso hoje é o que me dá base para exercer a minha profissão. Tenho muita facilidade, posso dizer até uma cumplicidade com a leitura e a escrita.
B - Conheci a literatura pequeno porque minha mãe sempre estava lendo e comprava livros e gibis pra mim e pro meu irmão, passei a escrever em fanzines e jornais de bairro. Em 2000 lancei independente meu primeiro livro e não parei mais, foram 4 livros independentes.
Ainda sobre formação, queria que você GOG falasse um pouco da sua relação com o marxismo.
G - A teoria marxista é o solo em que piso. Sem ela não sei o que seria do GOG, dos seus argumentos, dos seus textos. A minha aproximação com o marxismo data dos meus tempos de Faculdade, veio então um aprofundamento da leitura, nos debates, nos questionamentos e a certeza de que o solo era realmente firme. O materialismo dialético é algo que me fascina e que me mantém longe de muitas doutrinas que fazem da transitoriedade do homem na terra e da falta de respostas uma jogatina sem fim. Vejo claramente que a falta de leitura e historicidade de vários integrantes da esquerda, principalmente a brasileira, é um fator decisivo na tomada de decisões equivocadas e que consequentemente fortalecem a elite com argumentos falsos, mas superficialmente convincentes, de que o socialismo e toda a teoria marxista é coisa do passado, ultrapassada. Hoje a grande questão é definir: o que é ser de esquerda? A minha resposta é dada nos meus textos e no meu modo de agir.
Por falar em faculdade, quase 100% das vagas em cadeias públicas não-especiais são para pretos e pobres? São a favor das cotas?
B - Se rico fosse preso, ia faltar cadeia. Mas um rico preso, desvia mais dinheiro que o valor que todos detentos de uma penitenciária juntos roubaram; desvio de verba, superfaturamento, e quem paga é o povo. Lalau desviou 169 milhões e está em prisão domiciliar, deixa ele morrer na cadeia, mas não, 169 milhões paga muita gente, compra liberdade.
G - Olha, falo disso e começo a me arrepiar todo. É porque essa leitura me dá a certeza que eles (a elite racista e preconceituosa) estão ganhando o jogo, e de goleada. E pior, no Brasil há mais de 500 anos, e o jogo ainda demora pra ser virado. Sou a favor de ações, políticas afirmativas, de tomada de decisões sérias, marcação de espaço e definição de quem é quem nesse jogo (luta de classes). Percebo que o pior inimigo é o que está próximo, aliado, mas fazendo o jogo do inimigo.
Como vocês pensam a proximidade entre o hip-hop e outros movimentos sociais.
G - Não vejo outro caminho para o hip-hop e os demais movimentos sociais que não seja o da interação, do diálogo, da utilização das redes de comunicação já montadas. Mas falta algo que proporcione essa aproximação. Talvez seja todos admitirem que ninguém é dono da verdade.
B - Penso que temos que correr juntos, todos falamos a mesma língua e lutamos por ideais iguais ou parecidos. Eu sou branco e me identifico 100% com o movimento negro, porque sou pobre e passo vários problemas de ordem financeira, descaso e preconceito. Não racial, mas é preconceito também, minha mulher é negra e amo ela, nosso filho é mestiço. A luta não tem que ser racial, tem que ser de classe social, combater a elite que domina e massacra. Me identifico com os sem-terra, sem-teto, porque sou um também, moro numa casa de 2 cômodos com córrego fedendo atrás e tem gente que só vê minhas realizações e pensa que sou rico. Só tenho disposição em dobro, acredito nos meus projetos antes de todo mundo.
Você esteve recentemente no congresso Nacional do MST, e no acampamento João Cândido do MTST, onde fará um show este sábado. É um rapper afro-comunista?
G - Não tenho definição. É o que eu sinto e os outros percebem. Não adianta um discurso engajado, sem ações que o fortaleça. Sou um ser humano em construção, todo dia uma parede é erguida, outra derrubada, mas sem mexer nos meus pilares, que são pedras fundamentais do meu pensamento. Logo visitar e manter uma relação de parceria, respeito e solidariedade com o MST e com o MTST são para mim sinais claros que a luta continua, de que não estou só, tenho parceiros e que a realidade pode ser transformada com postura, atitude, organização e determinação. Ouvir os acampados do João Cândido gritando o verso "Revolucionários do Brasil: fogo no pavio, fogo no pavio!" entoado como grito de ordem, de guerra, de melhoria por milhares de pessoas que realmente acreditam na transformação foi algo que me deixou muito pensativo, feliz e cada vez mais concentrado na minha caminhada que sempre trabalhei para correr pelo certo.
E a melhor forma de correr entre os que prometem Reino dos Céus e a Cidade de Deus na Terra, armados de diversos meios?
G - Estar sempre atento. Eles possuem armas poderosas e não vão se entregar. Mas os passos a serem tomados pelo povo têm que ser apresentados com sapiência, senão vira banho de sangue.
B - Sinceramente, acredito em quem trabalha pelo coletivo e corre atrás sem esperar cair do céu. Do céu só cai chuva e infelizmente às vezes avião. Terra prometida não existe, mude a sua própria quebrada, sua rua, para melhor e estará fazendo sua parte. A revista Rap Brasil, por exemplo, é a única revista de rap com circulação nacional na banca. Temos que consumir nossos produtos, senão a editora tira a revista de circulação. Quem faz a revista ama o rap, mas a editora quer saber de números. Acho que tudo na vida temos que fazer bem feito, senão seremos mais um. Meu blog (http://www.suburbanoconvicto.blogger.com.br/) é atualizado todo dia e nem por isso abrimos para assuntos vazios. O conteúdo é de qualidade, isso faz a diferença, só assim mostraremos o que de melhor aparece nas periferias do Brasil.
Conta mais GOG dessa treta em defesa do Piauí, contra a Phillips e o movimento "Cansei".
G - O Movimento "Cansei" parece até uma piada, mas é na verdade muito mal intencionado. Não pelos artistas que assinaram o "Manifesto", mas pelos seus idealizadores. Quem tem um pouco de conhecimento histórico sabe da semelhança entre esse movimento e as manifestações por um "Brasil melhor” que aconteceram nos anos 60, mais precisamente em 64, pouco antes do golpe militar. Eles têm em mente, como estratégia, alimentar esse sentimento, desestabilizar o governo e a sociedade. Não se conformam em ter alguém de ascensão popular como chefe maior do nosso país. Não estou nem aí pro boicote deles, tenho meu povo, meu público e meu espaço, dignos e conquistados com trabalho e seriedade. Agora, o Sr. Paulo Zottolo vai ouvir! Já gravei “Direito de Resposta”, terminamos o vídeo e estaremos em breve entregando nossa versão dos fatos ao governador do Piauí, Wellington Dias. Outra cópia será enviada ao presidente da Philips na América Latina. Isso não pode passar batido. Fui gerado no Piauí. Minha família é toda do estado, embora acredite que todos os brasileiros deveriam se manifestar. Estou fazendo o que acredito.
Queria que você Buzo falasse da idéia central do seminário "Cultura e pensamentos livres", que está organizando junto ao grupo Epidemia em São Paulo e no Ceará, e inclusive o GOG também vai participar.
B - A idéia central é promover debates (palestras), mesclando pessoas da periferia com acadêmicos, pessoas de outras classes sociais, para que um veja o outro e vice-versa. Trocar mesmo, não podemos nos fechar. Mas isso não quer dizer se vender, quer dizer mostrar o nosso talento e chamar quem pode ajudar, financeiramente ou não, para somar. Se um cineasta pode ir fazer uma oficina na minha quebrada, isso me interessa, não só a grana dele, o seminário vai ser útil para misturar as classes.
Como você vê a ampliação dos espaços culturais nas quebradas? O que sugere pra avançarmos mais?
B - Montei a Biblioteca Comunitária Suburbano Convicto há dois anos e hoje ela funciona sozinha, sem depender da minha presença: olha o progresso. Quanto aos cineclubes populares acho fantástico: teatro e cinema tem que ter na periferia também. Hoje acreditamos que podemos fazer literatura, cinema, teatro, e vários lokos estão fazendo. Eu tô nesse bonde, pretendo fazer alguma coisa em 2008, uns documentários, trabalho numa produtora de vídeo (DGT Filmes) e lá está sendo minha escola. Acho que para avançarmos mais, temos que chamar cada vez mais gente para se envolver, criar interesse e buscar parceiros financeiros, colocar os projetos no papel e correr atrás. Mas pode ter certeza, a luta só acaba quando o ultimo de nós cair.
E a idéia da coletânea "Suburbano convicto - pelas periferias do Brasil" surgiu como?
B - Faço parte do núcleo de literatura periférica da Ação Educativa. Quando num de nossos encontros o Eleílson disse que a Ação apoiaria alguns livros, sugeri a coletânea, convidei algumas pessoas e outras apareceram naturalmente. Todos os passos do livro foram acompanhadas por todos via e-mail coletivo, vamos lançar dia 25/09 em São Paulo e a idéia é fazer em alguns dos outros 6 estados envolvidos. Vamos ver se conseguimos apoio pra isso.
G - Quando recebi o convite, disse que na realidade era uma convocação. Aceitei no primeiro momento e me confesso muito ansioso para o lançamento, as ações que vão ser tomadas e possibilidades de acesso às comunidades que nos será proporcionado. Temos que trabalhar muito. Tenho certeza que o time é de primeira.
Quais seus outros principais projetos atuais?
B - Lançar meu livro "Guerreira" dia 05/10 pela Global Editora; terminar a correção do livro: “Do conto à poesia”, que pretendo lançar em 2008; finalizar o outro que estou escrevendo: "Profissão MC". De vida é comprar uma casa para minha família, pra isso luto tanto. Continuar fazendo as coisas que tenho feito já ta de bom tamanho.
G – Em relação ao rap, na realidade não somos um grupo, somos uma família formada por várias pessoas com proximidade de pensamentos. O DJ Tiago, Rapadura e o Lindomar 3L estão com seus discos sendo produzidos e logo, logo sairão pelos quatro cantos do Brasil, apresentando suas propostas. E eu GOG estarei garimpando novos talentos para me acompanhar nos palcos da vida. Esse processo já aconteceu com o grupo A Família. Acabei de finalizar o clipe de “Cavalo sem dono selvagem”, tentando mostrar e provar que muito pouca coisa mudou, que a estratégia do sistema é outra e que a maldade continua a mesma. E meu primeiro DVD, “Cartão-Postal-Bomba”, está em fase final de edição. Estamos trabalhando dia e noite para que chegue às mãos dos guerreiros e guerreiras em dezembro. Mas a prioridade é fazer um trabalho de qualidade, que dê orgulho a quem assistir.
Danilo Dara é historiador.
Quem é Alessandro Buzo?
Nascido na capital, cresceu no Itaim Paulista (extremo leste) e tem 35 anos. É escritor, arte-educador, agente cultural. Em 2002, publicou de forma independente seu primeiro livro, “O Trem - Baseado em Fatos Reais”, depois veio o fanzine “Boletim do Kaos”, semanal, gratuito (atualmente na edição 148º ). Participou de coletâneas de “Literatura Marginal” da Caros Amigos e “Rastilho de Pólvora” da Cooperifa, e vieram outros livros independentes como “O Trem - Contestando a Versão Oficial” e “Guerreira” (agora relançado pela Global). Colunista de sites voltados ao hip-hop (Enraizados, Rap Nacional e Real Hip Hop), é também repórter da revista Rap Brasil e organiza o evento “Favela toma conta” na sua quebrada. Mais info: http://www.suburbanoconvicto.blogger.com.br/ .
Quem é GOG?
Genival Oliveira Gonçalves, conhecido nacionalmente pela sigla GOG, é considerado um dos grandes pilares da cultura hip-hop nacional. Nascido e criado na periferia de Brasília, filho dos nordestinos Sebastiana e Genésio Gonçalves – seus mestres -, desde os tempos do break em 1982 sua originalidade poética, militância política e força rítmica resultaram numa potente família ao seu lado. Já lançou em sua carreira mais de 8 discos, entre eles “CPI da Favela” (2000), “Tarja Preta” (2004) e o último “Aviso às gerações” (2007). Hoje coordena o projeto Só Balanço, núcleo que comporta um selo, um estúdio e duas lojas no Distrito Federal. Atualmente GOG tem como parceiros mais próximos, independente de sua carreira com os DJ Tiago, Rapadura e Lindomar 3L, os rappers engajados Demis Preto Realista, Gato Preto, Crônica e o DJ Bira, que formam o grupo “A Família”. Para o fim de ano GOG prepara seu primeiro DVD, “Cartão-Postal-Bomba”.
DIREITO DE RESPOSTA - GOG (2007)
1
Meu pai, minha mãe, tia Helena, minhas primas pequenas,
Meus tios, primos, vizinhos, Povo forte nordestino
Irados, inconformados, agressões ao Estado
Que meus ancestrais escolheram, onde fomos criados
2
Pois bem, Sr. Paulo Zottolo, ouça a voz do Crioulo
Você que sempre comeu a maior fatia do bolo
Sedução, charme, Segredos, cifras milionárias
Valor econômico, Executivo capa da “Caras”
3
Imagino as piadas de saguão, e no avião
Na reunião, com os “puxa saco” de plantão
Oh, Se empanturrou com dólares no bolso
Falou o que quis, encare agora a corda no pescoço
4
Vai passar por maus bocados, produtos boicotados
Chamado às pressas na matriz andam preocupados
Televisores quebrados na manifestação da praça
Philips, Walita na minha casa nem de graça
POR AMOR, POR AMOR,
O GRITO DO GLADIADOR!
POR AMOR, POR AMOR,
O GRITO CONTRA O OPRESSOR!
1
Sei o que moveu seu total irado desprezo
Julgava meu amado Piauí indefeso
Falaria, humilharia e sairia ileso
Surpreso? Cruzado, direto, sinta o peso
2
Balançou, e já entrou na dança das cadeiras
Carta de demissão, é manhã de segunda feira
Do seu lap top caixa de mensagens não acessa mais
Chuva de críticas, cara na capa dos jornais
3
Quebrou o jarro, capitalismo gigante dos pés de barro
Das favelas daqui, quer sair, acelere seu carro
Persona non grata, desprezo fere ou mata
Léguas pra buscar água contaminada na lata
4
De Monte Alegre a Floriano rumo a Luis Correia
Tratamento vip pros “cabra de peia”, golpeia
Que não respeita a luta diária suada alheia
Hip Hop 100 por cento quatro elementos na veia
POR AMOR, POR AMOR,
O GRITO DO GLADIADOR!
POR AMOR, POR AMOR,
O GRITO CONTRA O OPRESSOR!
1
“Nem 1 milhão de Lâmpadas florescentes, incandescentes
Iluminariam sua mente doente, demente
Vou em frente, lado a lado com os bolsões de pobreza
Que dó da sua fraqueza, sinto o calor da vela acesa
2
Cansei das falcatruas montadas por você e seus sócios
Elementar derrubar quem atrapalhou seus negócios
Tv digital vitória japonesa, Derrota holandesa,
Azedaram seu banquete já quente na mesa
3
Engenheiro, adepto do topa tudo por dinheiro
Cansei dos juros altos coletivo cheio
Do que vale mapas, fotos de favelas na luxuosa sala
Se a sua responsabilidade social é falha
4
As classes D e E declaram-se oposição
A estratégia naufragou levando ambição
Em apenas uma linha definir você?
Motivo de alegria da Sansung e da LG
POR AMOR, POR AMOR,
O GRITO DO GLADIADOR!
POR AMOR, POR AMOR,
O GRITO CONTRA O OPRESSOR!
Crime... futebol... música... poesia?
Entrevista com Sérgio Vaz
Por Danilo Dara
Nas palavras do jovem griot Gaspar do Záfrica Brasil, Sérgio Vaz é o oráculo da periferia. “Um dos mais imprescindíveis”, para o historiador Guinão do grupo Preto Soul. E sabemos que realmente Vaz está para a Literatura Periférica assim como alguns dos melhores MCs brasileiros - como Brown e GOG - estão para o rap nacional. Colecionador de pedras desde a infância, em Piraporinha no extremo sul de São Paulo, ex-militante do PT na juventude, realmente foi escutando rap e escrevendo poesia que Sérgio encontrou a melhor forma de amar. E portanto de guerrear, com malandra sabedoria e sem perder a ternura. Adotou e foi adotado pela cidade de Taboão da Serra “que sonha”, do outro lado do extremo sul, onde começaram os saraus da Cooperifa há quase seis anos, numa fábrica ocupada por artistas. Hoje o poeta Vaz já acumula mais de vinte anos de pedras escritas, 5 livros lançados, e os saraus multiplicam-se na Periferia-SP e pelo Brasil afora, transformando espaços abandonados e botecos em quilombos culturais.
Danilo - Queria que você falasse um pouco dos principais traços dessa trajetória de mais de 20 anos de poesia...
Sérgio Vaz - Eu, como todo moleque de periferia queria ser jogador de futebol, aliás, ainda quero. Comecei a escrever mais ou menos com uns 16 anos de idade. Não sabia que era poeta, não sabia que escrevia poesia. Apenas gostava de escrever. Na periferia o talento quando se manifesta, por falta de conhecimento, é muito fácil de confundir com esquisitice. Na periferia, há mais de vinte cinco anos atrás, ler e escrever não era comum para muitos garotos. Tanto que quando eu lancei meu primeiro livro eu jogava na várzea, e quando alguém me perguntava o que eu escrevia, eu respondia: Piada! Comecei a pensar em escrever meu primeiro livro, 'Subindo a ladeira mora a noite”, em 1986, e só consegui dinheiro para lançar em 1988: dois anos juntando dinheiro para lançar um livro. Naquela época, o país, recém-saído da ditadura, muita gente falava que eu escrevia poesia panfletária, que eu estava fora de moda, etc. Só quando o rap surgiu que minha poesia fez sentido para algumas pessoas. Fiz muita apresentação poética em shows de rap. Devo muito ao hip-hop. De lá pra cá lancei 5 livros.
Por falar em rap, você sempre diz o quanto o hip-hop mudou sua visão das coisas...
Pois é, quando o rap chegou a minha poesia já estava esperando, foi só somar com a rapaziada. Era militante de esquerda daqueles bem fervorosos (também já quis ser Che Guevara), mas descobri que a minha contribuição como ser humano e como brasileiro seria mais interessante como poeta do que como político-partidário. Eu era militante da música brasileira, eu não ouvia música internacional, e coisas assim. Mas com o tempo eu descobri que essa música não falava mais aos meus ouvidos, e de uma certa forma fui perdendo a referência. Ainda ouço alguma coisa, mas... O sarau do Rap[1] é para a galera nunca esquecer que são cronistas, com qualidade literária que não deve a nenhum escritor.
Sobre a chamada esquerda hoje... A impressão que dá é que você guarda certo ressentimento.
Acho que sou um ser humano de esquerda, até hoje meu voto tem sido nas pessoas da chamada esquerda. Mas a periferia nunca é chamada para participar de nada que tenha a ver com os rumos do país. Falam dela, escrevem sobre ela, mas ninguém quer andar com ela, entendeu? Na hora do vamos ver, ninguém quer saber o que a gente pensa. Me interesso muito mais por líderes comunitários do que senadores. Respeito os movimentos sociais, as pessoas, etc. Mas na periferia as pessoas ainda não sabem quem são, porque são, onde estão, enfim. Por quê? Porque ninguém informou pra ela. Puxa, se a classe média é esclarecida, oras bolas, por que não esclarecer os que não são? Falta generosidade. Intelectualidade demais, coração de menos. É uma pena.
Cooperifa: significado mais íntimo pra você, seus limites, vaidades e potenciais...
A Cooperifa é o meu sonho. O ar que respiro. A Cooperifa me salvou a vida, e salva todo dia um pouquinho mais. Esse povo lindo e inteligente é a coisa mais linda do mundo. A Cooperifa cresceu tanto que já temos os nossos próprios inimigos. Não era para a gente crescer, se é que você me entende... O nosso palco é merecido. Primeiro porque fomos nós que o construímos, segundo porque somos nós que o sustentamos, e o terceiro é porque a comunidade já tomou para si o projeto. Pra falar a verdade eu prefiro trabalhar a vaidade do que lidar com frustração. Trabalho a minha todo dia, e todo dia cometo falhas. Nossa gente ficou muito tempo longe das oportunidades, por isso os erros, mais pela ansiedade. Transformar ódio em raiva é processo lento. A vaidade, por pior que seja, tem ajudado a encontrar atalhos para a verdadeira auto-estima.
A impressão muitas vezes é que a elite está dizendo: Viva a Periferia, portanto Morte à Periferia! Celebra o que para ela é seu “exótico”, e manda matar os suspeitos por existência.
A princípio acho que nós, da periferia, somos tratados como se morássemos em um outro país, um país considerado menor, na visão dos seus colonizadores. Somos a Palestina brasileira. E como palestino me sinto no direito de lutar pelo meu território. Com pedras e poemas.
Qual a melhor forma de transitar entre os que prometem o Reino dos Céus e a Cidade de Deus na Terra, armados de diversas medias?
Os saraus que estão acontecendo pela quebrada são a grande prova que o povo quer uma alternativa à televisão. São vários acontecendo, mais de trinta. O incentivo à leitura, à criação poética. A luta pela melhor qualidade no ensino. Ler um bom jornal, uma boa revista. Levar as cadeiras para as calçadas, precisamos conversar mais uns com os outros. Ler bons livros. Ler boas pessoas.
Você é a favor das cotas para negros e pobres nas universidades públicas especiais? E para brancos e ricos nas cadeias públicas não-especiais?
Sim sou a favor das cotas. De resto deixo um poema:
“que a pele escura não seja escudo para os covardes que habitam a senzala do silêncio,
porque nascer negro é conseqüência
ser, é consciência”.
O que esperar da I Semana de Arte Moderna da Periferia? Tudo? Não esperar nada, e colocar a mão na massa?
Quem viver verá. Vamos colocar fogo, depois a gente vê como apaga.
(Danilo Dara)
QUEM É SÉRGIO VAZ?
Poeta, colecionador de pedras desde a infância em Piraporinha no extremo sul de São Paulo-SP, ex-militante do PT na juventude, foi escutando rap e escrevendo poesia que Sérgio encontrou a melhor forma de amar. E portanto de guerrear. Adotou e foi adotado pela cidade de Taboão da Serra, onde idealizou os saraus da Cooperifa, que começaram há quase seis anos numa fábrica ocupada por artistas. Hoje o poeta Vaz já acumula mais de vinte anos de pedras escritas, é autor de A poesia dos deuses inferiores entre outros livros e alimenta o blog http://www.colecionadordepedras.blogspot.com/ ; os saraus e suas poesias multiplicam-se na Periferia-SP e pelo Brasil periférico afora. Para falar diretamente com Vaz, poetavaz@ig.com.br .
Arte moderna da periferia: Antropofagia periférica
Partindo da atitude que Arte não pode ser feita por quem escraviza, ao completar seis anos a Cooperifa propõe um processo coletivo: a construção da I Semana de Arte Moderna da Periferia, a ser realizada no início de novembro. Mais informações nos becos e vielas da Periferia-Brasil
Por Danilo Dara
“Sem-terra no campo, hip-hop na cidade!” professava Preto Ghóez, o finado escritor e MC[1] do grupo Clã Nordestino, sempre vivo entre os guerreiros que movimentam a Cooperifa. É: Cooperifa! Nada de cooperativismo de fachada ou economia solidária meia-boca: um coletivo radical de poetas, acima de tudo, mas também de músicos, rapentistas, militantes do movimento negro, sem-teto entre outros artivistas sangue-nos-olhos. Que se reúnem semanalmente há quase seis anos, na hora da novela das oito, num canto mágico da periférica zona sul de São Paulo - Taboão da Serra “que sonha” incluída, onde tudo começou. Esfinge estética que tem inspirado muitos saraus pelas quebradas do país.
Isso mesmo: seis anos de... Saraus. Essa forma de encontro originada na corte do Brasil, devorada e atualizada por norte-nordestinos afro-descendentes nas periferias das grandes cidades brasileiras do século XXI. Periferia desvairada! Por incrível que pareça, realmente sem fins lucrativos! Os motivos por enquanto são: comungar outras Palavras, fortalecer a auto-estima e traficar formações reais. Sem promessas de Reino dos Céus nem Cidade de Deus na Terra. Os entorpecentes de sempre (cerveja, cigarro, carreiras, TVs, dízimos e outros caça-níqueis) ficam em quinto plano onde o barato é a palavra e sua revolta. Onde também o “silêncio é uma prece”, e ouvir humildemente e respeitar o outro é o maior aprendizado – cada vez mais raro hoje. Numa sociedade que “falha a fala e fala a bala”, o próprio reencontro com a palavra é a cura.
E o desfalque no Ibope tende a crescer. Pois as noites de Sarau são de glória – como diz o rap “Aos Malês” do grupo Periafricania -, sem intervalos comerciais (exceção para obras dos próprios poetas em carne e osso; apesar das dificuldades já foram lançados mais de 40 livros independentes na Cooperifa). Noites incomparáveis às das novelas que, não à toa, simultaneamente aprisionam guerreir@s nos barracos, salas, celas, cadeiras, elétricas. Não só cada vez mais gente se incorpora à Cooperifa, como outros saraus, cineclubes, ocupações materiais e simbólicas, setores de cultura nos movimentos se somam e se fortalecem mutuamente na mesma guerra por libertação. Sarau do Binho, do Zagaia, do MTST; Maloca Cultural, Hip-hop Quilombola e tecer e tecer... Cine Becos e Vielas Periferia Ativa afora; Irmãos Carozzi da Lona Preta no teatro, Manicômicos, a afro-dramaturgia de Umojá na zona Sul tecem!
Coletivos de periferia para a periferia, que fique bem escuro! Muito embora de uns tempos pra cá pipoquem playboys, políticos, jornalistas e fundações culturais “interessados” na estória: muito cuidado lá e cá! Eles passam, passeiam, mas os guerreiros de verdade não estão só de passagem (como nos ensina a poeta cooperiférica Dinha). E serão identificados (no complemento de outro grande escritor periférico): os falsos e os verdadeiros, novos e velhos! Pois se “pra quem vive na guerra a paz nunca existiu”, a luta periférica é luta periférica em qualquer lugar (pra lembrar do cruzamento utópico da Av. Racionais MCs com Av. GOG). No raciocínio do libertário griot[2] Gaspar do grupo Záfrica Brasil: antigamente quilombos, hoje periafricania, favela, ocupação, saraus, nos quais muitos cara-pálida na aparência têm tido papel fundamental – sem nunca amenizar a face racista do capital. Mas quem vê só cara não vê evolução.
E por falar em griots periafricanos, como lembrou Liliane Braga aqui no Brasil de Fato (15/12/2006), a Cooperifa é isso: reunião de um “povo lindo e inteligente” e sua Versão Popular da história, evoluindo pra revolucionar todas e todos. E como nessa longa história pós-África (de massacre também na América, Ásia...) a paz nunca existiu mesmo, sempre esteve no sangue e na pele dos verdadeiros guerreiros o remar contra as marés (chamadas de abolição, paz e democracia pelos ricos). Ainda mais depois que a chibata virou o dinheiro e a metralhadora da polícia. E a negação profunda deste negócio é colecionar sabiamente as pedras no caminho, lapidá-las poeticamente para o momento certo do salto da pantera preta-no-branco. Salto que pode significar a verdadeira emergência da maioria (também chamado de “quilombo” desde Zumbi, e de “comunismo” desde Marx). Comumquilombismo ou Quilombunismo, pra lembrar em reverso dos centenários Abdias do Nascimento e Solano Trindade... Não importa ficar disputando entre nós o nome. Do campo à cidade, outra letra do Clã complementa uma proposta a todos: “MST: eu e você, somos um só!”.
E a rapaziada da cidade também já tá dando saltos importantes na produção dos próprios livros, cds, roupas, artes plásticas. Nas letras, as coletâneas “Literatura Periférica” organizadas por Ferréz deram fôlego importante. Muito o quê fazer ainda, porém. Agora novas pistas não faltam: como as Edições Toró, que seguem editando autonomamente livros de escritores periféricos com muita qualidade a preço realmente popular (como a Expressão faz noutro campo), mostrando que um projeto editorial crítico não pode ficar só na carta de intenções - aliás, de forte apelo comercial. No mesmo toró e ímpeto literário, efeitos colaterais, fanzines artesanais e até as capitalizações contraditórias por parte de grandes editoras, ONGs, fundações e outros bancos mais ricos. Acabou de sair a nível nacional pela Global Editora a promissora coleção Literatura Periférica, cujo primeiro livro foi “Colecionador de Pedras” de Sérgio Vaz.
Um apanhado desse potencial estético todo (portanto revolucionário, pois não é arte pela arte) também já pode ser conferido em vídeo. No mínimo dois exemplos fazem parte desse marco, curtas finalizados em 2007: “Panorama – arte na periferia”, de Peu Andrade, o qual como diz o nome repassa várias manifestações tratadas aqui; e “2 meses e 23 minutos”, de Rogério Pixote e Fábio Manzani, que registra o esboço de uma experiência quilombunista vivida por mulheres e crianças numa ocupação do MTST.
E por aí iríamos por outras artes...
Prestes a completar seis anos de efervescência, os artistas periféricos próximos à Cooperifa querem mais. Oitenta e cinco anos depois da Semana de 22, e cerca de quarenta após a explosão da Estética da fome e do Tropicalismo - cujo presente pretendia-se eterno -, convocam-se todos “os verdadeiros” a participar do processo coletivo de construção da I Semana de Arte Moderna da Periferia – Antropofagia Periférica, que se realizará entre 4 e 11 de novembro deste ano. O convite diz o seguinte: “85 anos depois, a versão da periferia sobre a arte produzida no Brasil: Literatura, Teatro, Artes, Dança e Música. Informações nos becos e quebradas”. Quem vai passar incólume?
Danilo Dara é historiador.
[1] MC é o Mestre de Cerimônias do grupo de rap, um dos elementos do hip-hop, aquele que transmite o conhecimento através do canto-falado, da poesia ritmada.
[2] Griots são os guardiões e transmissores orais (canto-falado) das memórias históricas milenares cujas origens remontam à Costa Oeste do continente africano, de onde muitos negros foram seqüestrados para virarem escravos no Brasil.
[3] Encontro mensal de rappers coordenado por Sérgio, onde recitam suas letras entre si.
Por Danilo Dara
Nas palavras do jovem griot Gaspar do Záfrica Brasil, Sérgio Vaz é o oráculo da periferia. “Um dos mais imprescindíveis”, para o historiador Guinão do grupo Preto Soul. E sabemos que realmente Vaz está para a Literatura Periférica assim como alguns dos melhores MCs brasileiros - como Brown e GOG - estão para o rap nacional. Colecionador de pedras desde a infância, em Piraporinha no extremo sul de São Paulo, ex-militante do PT na juventude, realmente foi escutando rap e escrevendo poesia que Sérgio encontrou a melhor forma de amar. E portanto de guerrear, com malandra sabedoria e sem perder a ternura. Adotou e foi adotado pela cidade de Taboão da Serra “que sonha”, do outro lado do extremo sul, onde começaram os saraus da Cooperifa há quase seis anos, numa fábrica ocupada por artistas. Hoje o poeta Vaz já acumula mais de vinte anos de pedras escritas, 5 livros lançados, e os saraus multiplicam-se na Periferia-SP e pelo Brasil afora, transformando espaços abandonados e botecos em quilombos culturais.
Danilo - Queria que você falasse um pouco dos principais traços dessa trajetória de mais de 20 anos de poesia...
Sérgio Vaz - Eu, como todo moleque de periferia queria ser jogador de futebol, aliás, ainda quero. Comecei a escrever mais ou menos com uns 16 anos de idade. Não sabia que era poeta, não sabia que escrevia poesia. Apenas gostava de escrever. Na periferia o talento quando se manifesta, por falta de conhecimento, é muito fácil de confundir com esquisitice. Na periferia, há mais de vinte cinco anos atrás, ler e escrever não era comum para muitos garotos. Tanto que quando eu lancei meu primeiro livro eu jogava na várzea, e quando alguém me perguntava o que eu escrevia, eu respondia: Piada! Comecei a pensar em escrever meu primeiro livro, 'Subindo a ladeira mora a noite”, em 1986, e só consegui dinheiro para lançar em 1988: dois anos juntando dinheiro para lançar um livro. Naquela época, o país, recém-saído da ditadura, muita gente falava que eu escrevia poesia panfletária, que eu estava fora de moda, etc. Só quando o rap surgiu que minha poesia fez sentido para algumas pessoas. Fiz muita apresentação poética em shows de rap. Devo muito ao hip-hop. De lá pra cá lancei 5 livros.
Por falar em rap, você sempre diz o quanto o hip-hop mudou sua visão das coisas...
Pois é, quando o rap chegou a minha poesia já estava esperando, foi só somar com a rapaziada. Era militante de esquerda daqueles bem fervorosos (também já quis ser Che Guevara), mas descobri que a minha contribuição como ser humano e como brasileiro seria mais interessante como poeta do que como político-partidário. Eu era militante da música brasileira, eu não ouvia música internacional, e coisas assim. Mas com o tempo eu descobri que essa música não falava mais aos meus ouvidos, e de uma certa forma fui perdendo a referência. Ainda ouço alguma coisa, mas... O sarau do Rap[1] é para a galera nunca esquecer que são cronistas, com qualidade literária que não deve a nenhum escritor.
Sobre a chamada esquerda hoje... A impressão que dá é que você guarda certo ressentimento.
Acho que sou um ser humano de esquerda, até hoje meu voto tem sido nas pessoas da chamada esquerda. Mas a periferia nunca é chamada para participar de nada que tenha a ver com os rumos do país. Falam dela, escrevem sobre ela, mas ninguém quer andar com ela, entendeu? Na hora do vamos ver, ninguém quer saber o que a gente pensa. Me interesso muito mais por líderes comunitários do que senadores. Respeito os movimentos sociais, as pessoas, etc. Mas na periferia as pessoas ainda não sabem quem são, porque são, onde estão, enfim. Por quê? Porque ninguém informou pra ela. Puxa, se a classe média é esclarecida, oras bolas, por que não esclarecer os que não são? Falta generosidade. Intelectualidade demais, coração de menos. É uma pena.
Cooperifa: significado mais íntimo pra você, seus limites, vaidades e potenciais...
A Cooperifa é o meu sonho. O ar que respiro. A Cooperifa me salvou a vida, e salva todo dia um pouquinho mais. Esse povo lindo e inteligente é a coisa mais linda do mundo. A Cooperifa cresceu tanto que já temos os nossos próprios inimigos. Não era para a gente crescer, se é que você me entende... O nosso palco é merecido. Primeiro porque fomos nós que o construímos, segundo porque somos nós que o sustentamos, e o terceiro é porque a comunidade já tomou para si o projeto. Pra falar a verdade eu prefiro trabalhar a vaidade do que lidar com frustração. Trabalho a minha todo dia, e todo dia cometo falhas. Nossa gente ficou muito tempo longe das oportunidades, por isso os erros, mais pela ansiedade. Transformar ódio em raiva é processo lento. A vaidade, por pior que seja, tem ajudado a encontrar atalhos para a verdadeira auto-estima.
A impressão muitas vezes é que a elite está dizendo: Viva a Periferia, portanto Morte à Periferia! Celebra o que para ela é seu “exótico”, e manda matar os suspeitos por existência.
A princípio acho que nós, da periferia, somos tratados como se morássemos em um outro país, um país considerado menor, na visão dos seus colonizadores. Somos a Palestina brasileira. E como palestino me sinto no direito de lutar pelo meu território. Com pedras e poemas.
Qual a melhor forma de transitar entre os que prometem o Reino dos Céus e a Cidade de Deus na Terra, armados de diversas medias?
Os saraus que estão acontecendo pela quebrada são a grande prova que o povo quer uma alternativa à televisão. São vários acontecendo, mais de trinta. O incentivo à leitura, à criação poética. A luta pela melhor qualidade no ensino. Ler um bom jornal, uma boa revista. Levar as cadeiras para as calçadas, precisamos conversar mais uns com os outros. Ler bons livros. Ler boas pessoas.
Você é a favor das cotas para negros e pobres nas universidades públicas especiais? E para brancos e ricos nas cadeias públicas não-especiais?
Sim sou a favor das cotas. De resto deixo um poema:
“que a pele escura não seja escudo para os covardes que habitam a senzala do silêncio,
porque nascer negro é conseqüência
ser, é consciência”.
O que esperar da I Semana de Arte Moderna da Periferia? Tudo? Não esperar nada, e colocar a mão na massa?
Quem viver verá. Vamos colocar fogo, depois a gente vê como apaga.
(Danilo Dara)
QUEM É SÉRGIO VAZ?
Poeta, colecionador de pedras desde a infância em Piraporinha no extremo sul de São Paulo-SP, ex-militante do PT na juventude, foi escutando rap e escrevendo poesia que Sérgio encontrou a melhor forma de amar. E portanto de guerrear. Adotou e foi adotado pela cidade de Taboão da Serra, onde idealizou os saraus da Cooperifa, que começaram há quase seis anos numa fábrica ocupada por artistas. Hoje o poeta Vaz já acumula mais de vinte anos de pedras escritas, é autor de A poesia dos deuses inferiores entre outros livros e alimenta o blog http://www.colecionadordepedras.blogspot.com/ ; os saraus e suas poesias multiplicam-se na Periferia-SP e pelo Brasil periférico afora. Para falar diretamente com Vaz, poetavaz@ig.com.br .
Arte moderna da periferia: Antropofagia periférica
Partindo da atitude que Arte não pode ser feita por quem escraviza, ao completar seis anos a Cooperifa propõe um processo coletivo: a construção da I Semana de Arte Moderna da Periferia, a ser realizada no início de novembro. Mais informações nos becos e vielas da Periferia-Brasil
Por Danilo Dara
“Sem-terra no campo, hip-hop na cidade!” professava Preto Ghóez, o finado escritor e MC[1] do grupo Clã Nordestino, sempre vivo entre os guerreiros que movimentam a Cooperifa. É: Cooperifa! Nada de cooperativismo de fachada ou economia solidária meia-boca: um coletivo radical de poetas, acima de tudo, mas também de músicos, rapentistas, militantes do movimento negro, sem-teto entre outros artivistas sangue-nos-olhos. Que se reúnem semanalmente há quase seis anos, na hora da novela das oito, num canto mágico da periférica zona sul de São Paulo - Taboão da Serra “que sonha” incluída, onde tudo começou. Esfinge estética que tem inspirado muitos saraus pelas quebradas do país.
Isso mesmo: seis anos de... Saraus. Essa forma de encontro originada na corte do Brasil, devorada e atualizada por norte-nordestinos afro-descendentes nas periferias das grandes cidades brasileiras do século XXI. Periferia desvairada! Por incrível que pareça, realmente sem fins lucrativos! Os motivos por enquanto são: comungar outras Palavras, fortalecer a auto-estima e traficar formações reais. Sem promessas de Reino dos Céus nem Cidade de Deus na Terra. Os entorpecentes de sempre (cerveja, cigarro, carreiras, TVs, dízimos e outros caça-níqueis) ficam em quinto plano onde o barato é a palavra e sua revolta. Onde também o “silêncio é uma prece”, e ouvir humildemente e respeitar o outro é o maior aprendizado – cada vez mais raro hoje. Numa sociedade que “falha a fala e fala a bala”, o próprio reencontro com a palavra é a cura.
E o desfalque no Ibope tende a crescer. Pois as noites de Sarau são de glória – como diz o rap “Aos Malês” do grupo Periafricania -, sem intervalos comerciais (exceção para obras dos próprios poetas em carne e osso; apesar das dificuldades já foram lançados mais de 40 livros independentes na Cooperifa). Noites incomparáveis às das novelas que, não à toa, simultaneamente aprisionam guerreir@s nos barracos, salas, celas, cadeiras, elétricas. Não só cada vez mais gente se incorpora à Cooperifa, como outros saraus, cineclubes, ocupações materiais e simbólicas, setores de cultura nos movimentos se somam e se fortalecem mutuamente na mesma guerra por libertação. Sarau do Binho, do Zagaia, do MTST; Maloca Cultural, Hip-hop Quilombola e tecer e tecer... Cine Becos e Vielas Periferia Ativa afora; Irmãos Carozzi da Lona Preta no teatro, Manicômicos, a afro-dramaturgia de Umojá na zona Sul tecem!
Coletivos de periferia para a periferia, que fique bem escuro! Muito embora de uns tempos pra cá pipoquem playboys, políticos, jornalistas e fundações culturais “interessados” na estória: muito cuidado lá e cá! Eles passam, passeiam, mas os guerreiros de verdade não estão só de passagem (como nos ensina a poeta cooperiférica Dinha). E serão identificados (no complemento de outro grande escritor periférico): os falsos e os verdadeiros, novos e velhos! Pois se “pra quem vive na guerra a paz nunca existiu”, a luta periférica é luta periférica em qualquer lugar (pra lembrar do cruzamento utópico da Av. Racionais MCs com Av. GOG). No raciocínio do libertário griot[2] Gaspar do grupo Záfrica Brasil: antigamente quilombos, hoje periafricania, favela, ocupação, saraus, nos quais muitos cara-pálida na aparência têm tido papel fundamental – sem nunca amenizar a face racista do capital. Mas quem vê só cara não vê evolução.
E por falar em griots periafricanos, como lembrou Liliane Braga aqui no Brasil de Fato (15/12/2006), a Cooperifa é isso: reunião de um “povo lindo e inteligente” e sua Versão Popular da história, evoluindo pra revolucionar todas e todos. E como nessa longa história pós-África (de massacre também na América, Ásia...) a paz nunca existiu mesmo, sempre esteve no sangue e na pele dos verdadeiros guerreiros o remar contra as marés (chamadas de abolição, paz e democracia pelos ricos). Ainda mais depois que a chibata virou o dinheiro e a metralhadora da polícia. E a negação profunda deste negócio é colecionar sabiamente as pedras no caminho, lapidá-las poeticamente para o momento certo do salto da pantera preta-no-branco. Salto que pode significar a verdadeira emergência da maioria (também chamado de “quilombo” desde Zumbi, e de “comunismo” desde Marx). Comumquilombismo ou Quilombunismo, pra lembrar em reverso dos centenários Abdias do Nascimento e Solano Trindade... Não importa ficar disputando entre nós o nome. Do campo à cidade, outra letra do Clã complementa uma proposta a todos: “MST: eu e você, somos um só!”.
E a rapaziada da cidade também já tá dando saltos importantes na produção dos próprios livros, cds, roupas, artes plásticas. Nas letras, as coletâneas “Literatura Periférica” organizadas por Ferréz deram fôlego importante. Muito o quê fazer ainda, porém. Agora novas pistas não faltam: como as Edições Toró, que seguem editando autonomamente livros de escritores periféricos com muita qualidade a preço realmente popular (como a Expressão faz noutro campo), mostrando que um projeto editorial crítico não pode ficar só na carta de intenções - aliás, de forte apelo comercial. No mesmo toró e ímpeto literário, efeitos colaterais, fanzines artesanais e até as capitalizações contraditórias por parte de grandes editoras, ONGs, fundações e outros bancos mais ricos. Acabou de sair a nível nacional pela Global Editora a promissora coleção Literatura Periférica, cujo primeiro livro foi “Colecionador de Pedras” de Sérgio Vaz.
Um apanhado desse potencial estético todo (portanto revolucionário, pois não é arte pela arte) também já pode ser conferido em vídeo. No mínimo dois exemplos fazem parte desse marco, curtas finalizados em 2007: “Panorama – arte na periferia”, de Peu Andrade, o qual como diz o nome repassa várias manifestações tratadas aqui; e “2 meses e 23 minutos”, de Rogério Pixote e Fábio Manzani, que registra o esboço de uma experiência quilombunista vivida por mulheres e crianças numa ocupação do MTST.
E por aí iríamos por outras artes...
Prestes a completar seis anos de efervescência, os artistas periféricos próximos à Cooperifa querem mais. Oitenta e cinco anos depois da Semana de 22, e cerca de quarenta após a explosão da Estética da fome e do Tropicalismo - cujo presente pretendia-se eterno -, convocam-se todos “os verdadeiros” a participar do processo coletivo de construção da I Semana de Arte Moderna da Periferia – Antropofagia Periférica, que se realizará entre 4 e 11 de novembro deste ano. O convite diz o seguinte: “85 anos depois, a versão da periferia sobre a arte produzida no Brasil: Literatura, Teatro, Artes, Dança e Música. Informações nos becos e quebradas”. Quem vai passar incólume?
Danilo Dara é historiador.
[1] MC é o Mestre de Cerimônias do grupo de rap, um dos elementos do hip-hop, aquele que transmite o conhecimento através do canto-falado, da poesia ritmada.
[2] Griots são os guardiões e transmissores orais (canto-falado) das memórias históricas milenares cujas origens remontam à Costa Oeste do continente africano, de onde muitos negros foram seqüestrados para virarem escravos no Brasil.
[3] Encontro mensal de rappers coordenado por Sérgio, onde recitam suas letras entre si.
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