quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Crime... futebol... música... poesia?

Entrevista com Sérgio Vaz
Por Danilo Dara


Nas palavras do jovem griot Gaspar do Záfrica Brasil, Sérgio Vaz é o oráculo da periferia. “Um dos mais imprescindíveis”, para o historiador Guinão do grupo Preto Soul. E sabemos que realmente Vaz está para a Literatura Periférica assim como alguns dos melhores MCs brasileiros - como Brown e GOG - estão para o rap nacional. Colecionador de pedras desde a infância, em Piraporinha no extremo sul de São Paulo, ex-militante do PT na juventude, realmente foi escutando rap e escrevendo poesia que Sérgio encontrou a melhor forma de amar. E portanto de guerrear, com malandra sabedoria e sem perder a ternura. Adotou e foi adotado pela cidade de Taboão da Serra “que sonha”, do outro lado do extremo sul, onde começaram os saraus da Cooperifa há quase seis anos, numa fábrica ocupada por artistas. Hoje o poeta Vaz já acumula mais de vinte anos de pedras escritas, 5 livros lançados, e os saraus multiplicam-se na Periferia-SP e pelo Brasil afora, transformando espaços abandonados e botecos em quilombos culturais.

Danilo - Queria que você falasse um pouco dos principais traços dessa trajetória de mais de 20 anos de poesia...
Sérgio Vaz - Eu, como todo moleque de periferia queria ser jogador de futebol, aliás, ainda quero. Comecei a escrever mais ou menos com uns 16 anos de idade. Não sabia que era poeta, não sabia que escrevia poesia. Apenas gostava de escrever. Na periferia o talento quando se manifesta, por falta de conhecimento, é muito fácil de confundir com esquisitice. Na periferia, há mais de vinte cinco anos atrás, ler e escrever não era comum para muitos garotos. Tanto que quando eu lancei meu primeiro livro eu jogava na várzea, e quando alguém me perguntava o que eu escrevia, eu respondia: Piada! Comecei a pensar em escrever meu primeiro livro, 'Subindo a ladeira mora a noite”, em 1986, e só consegui dinheiro para lançar em 1988: dois anos juntando dinheiro para lançar um livro. Naquela época, o país, recém-saído da ditadura, muita gente falava que eu escrevia poesia panfletária, que eu estava fora de moda, etc. Só quando o rap surgiu que minha poesia fez sentido para algumas pessoas. Fiz muita apresentação poética em shows de rap. Devo muito ao hip-hop. De lá pra cá lancei 5 livros.

Por falar em rap, você sempre diz o quanto o hip-hop mudou sua visão das coisas...
Pois é, quando o rap chegou a minha poesia já estava esperando, foi só somar com a rapaziada. Era militante de esquerda daqueles bem fervorosos (também já quis ser Che Guevara), mas descobri que a minha contribuição como ser humano e como brasileiro seria mais interessante como poeta do que como político-partidário. Eu era militante da música brasileira, eu não ouvia música internacional, e coisas assim. Mas com o tempo eu descobri que essa música não falava mais aos meus ouvidos, e de uma certa forma fui perdendo a referência. Ainda ouço alguma coisa, mas... O sarau do Rap[1] é para a galera nunca esquecer que são cronistas, com qualidade literária que não deve a nenhum escritor.

Sobre a chamada esquerda hoje... A impressão que dá é que você guarda certo ressentimento.
Acho que sou um ser humano de esquerda, até hoje meu voto tem sido nas pessoas da chamada esquerda. Mas a periferia nunca é chamada para participar de nada que tenha a ver com os rumos do país. Falam dela, escrevem sobre ela, mas ninguém quer andar com ela, entendeu? Na hora do vamos ver, ninguém quer saber o que a gente pensa. Me interesso muito mais por líderes comunitários do que senadores. Respeito os movimentos sociais, as pessoas, etc. Mas na periferia as pessoas ainda não sabem quem são, porque são, onde estão, enfim. Por quê? Porque ninguém informou pra ela. Puxa, se a classe média é esclarecida, oras bolas, por que não esclarecer os que não são? Falta generosidade. Intelectualidade demais, coração de menos. É uma pena.

Cooperifa: significado mais íntimo pra você, seus limites, vaidades e potenciais...
A Cooperifa é o meu sonho. O ar que respiro. A Cooperifa me salvou a vida, e salva todo dia um pouquinho mais. Esse povo lindo e inteligente é a coisa mais linda do mundo. A Cooperifa cresceu tanto que já temos os nossos próprios inimigos. Não era para a gente crescer, se é que você me entende... O nosso palco é merecido. Primeiro porque fomos nós que o construímos, segundo porque somos nós que o sustentamos, e o terceiro é porque a comunidade já tomou para si o projeto. Pra falar a verdade eu prefiro trabalhar a vaidade do que lidar com frustração. Trabalho a minha todo dia, e todo dia cometo falhas. Nossa gente ficou muito tempo longe das oportunidades, por isso os erros, mais pela ansiedade. Transformar ódio em raiva é processo lento. A vaidade, por pior que seja, tem ajudado a encontrar atalhos para a verdadeira auto-estima.

A impressão muitas vezes é que a elite está dizendo: Viva a Periferia, portanto Morte à Periferia! Celebra o que para ela é seu “exótico”, e manda matar os suspeitos por existência.
A princípio acho que nós, da periferia, somos tratados como se morássemos em um outro país, um país considerado menor, na visão dos seus colonizadores. Somos a Palestina brasileira. E como palestino me sinto no direito de lutar pelo meu território. Com pedras e poemas.

Qual a melhor forma de transitar entre os que prometem o Reino dos Céus e a Cidade de Deus na Terra, armados de diversas medias?
Os saraus que estão acontecendo pela quebrada são a grande prova que o povo quer uma alternativa à televisão. São vários acontecendo, mais de trinta. O incentivo à leitura, à criação poética. A luta pela melhor qualidade no ensino. Ler um bom jornal, uma boa revista. Levar as cadeiras para as calçadas, precisamos conversar mais uns com os outros. Ler bons livros. Ler boas pessoas.

Você é a favor das cotas para negros e pobres nas universidades públicas especiais? E para brancos e ricos nas cadeias públicas não-especiais?
Sim sou a favor das cotas. De resto deixo um poema:

“que a pele escura não seja escudo para os covardes que habitam a senzala do silêncio,
porque nascer negro é conseqüência
ser, é consciência”.

O que esperar da I Semana de Arte Moderna da Periferia? Tudo? Não esperar nada, e colocar a mão na massa?
Quem viver verá. Vamos colocar fogo, depois a gente vê como apaga.

(Danilo Dara)



QUEM É SÉRGIO VAZ?
Poeta, colecionador de pedras desde a infância em Piraporinha no extremo sul de São Paulo-SP, ex-militante do PT na juventude, foi escutando rap e escrevendo poesia que Sérgio encontrou a melhor forma de amar. E portanto de guerrear. Adotou e foi adotado pela cidade de Taboão da Serra, onde idealizou os saraus da Cooperifa, que começaram há quase seis anos numa fábrica ocupada por artistas. Hoje o poeta Vaz já acumula mais de vinte anos de pedras escritas, é autor de A poesia dos deuses inferiores entre outros livros e alimenta o blog http://www.colecionadordepedras.blogspot.com/ ; os saraus e suas poesias multiplicam-se na Periferia-SP e pelo Brasil periférico afora. Para falar diretamente com Vaz, poetavaz@ig.com.br .




Arte moderna da periferia: Antropofagia periférica

Partindo da atitude que Arte não pode ser feita por quem escraviza, ao completar seis anos a Cooperifa propõe um processo coletivo: a construção da I Semana de Arte Moderna da Periferia, a ser realizada no início de novembro. Mais informações nos becos e vielas da Periferia-Brasil


Por Danilo Dara

“Sem-terra no campo, hip-hop na cidade!” professava Preto Ghóez, o finado escritor e MC[1] do grupo Clã Nordestino, sempre vivo entre os guerreiros que movimentam a Cooperifa. É: Cooperifa! Nada de cooperativismo de fachada ou economia solidária meia-boca: um coletivo radical de poetas, acima de tudo, mas também de músicos, rapentistas, militantes do movimento negro, sem-teto entre outros artivistas sangue-nos-olhos. Que se reúnem semanalmente há quase seis anos, na hora da novela das oito, num canto mágico da periférica zona sul de São Paulo - Taboão da Serra “que sonha” incluída, onde tudo começou. Esfinge estética que tem inspirado muitos saraus pelas quebradas do país.

Isso mesmo: seis anos de... Saraus. Essa forma de encontro originada na corte do Brasil, devorada e atualizada por norte-nordestinos afro-descendentes nas periferias das grandes cidades brasileiras do século XXI. Periferia desvairada! Por incrível que pareça, realmente sem fins lucrativos! Os motivos por enquanto são: comungar outras Palavras, fortalecer a auto-estima e traficar formações reais. Sem promessas de Reino dos Céus nem Cidade de Deus na Terra. Os entorpecentes de sempre (cerveja, cigarro, carreiras, TVs, dízimos e outros caça-níqueis) ficam em quinto plano onde o barato é a palavra e sua revolta. Onde também o “silêncio é uma prece”, e ouvir humildemente e respeitar o outro é o maior aprendizado – cada vez mais raro hoje. Numa sociedade que “falha a fala e fala a bala”, o próprio reencontro com a palavra é a cura.

E o desfalque no Ibope tende a crescer. Pois as noites de Sarau são de glória – como diz o rap “Aos Malês” do grupo Periafricania -, sem intervalos comerciais (exceção para obras dos próprios poetas em carne e osso; apesar das dificuldades já foram lançados mais de 40 livros independentes na Cooperifa). Noites incomparáveis às das novelas que, não à toa, simultaneamente aprisionam guerreir@s nos barracos, salas, celas, cadeiras, elétricas. Não só cada vez mais gente se incorpora à Cooperifa, como outros saraus, cineclubes, ocupações materiais e simbólicas, setores de cultura nos movimentos se somam e se fortalecem mutuamente na mesma guerra por libertação. Sarau do Binho, do Zagaia, do MTST; Maloca Cultural, Hip-hop Quilombola e tecer e tecer... Cine Becos e Vielas Periferia Ativa afora; Irmãos Carozzi da Lona Preta no teatro, Manicômicos, a afro-dramaturgia de Umojá na zona Sul tecem!

Coletivos de periferia para a periferia, que fique bem escuro! Muito embora de uns tempos pra cá pipoquem playboys, políticos, jornalistas e fundações culturais “interessados” na estória: muito cuidado lá e cá! Eles passam, passeiam, mas os guerreiros de verdade não estão só de passagem (como nos ensina a poeta cooperiférica Dinha). E serão identificados (no complemento de outro grande escritor periférico): os falsos e os verdadeiros, novos e velhos! Pois se “pra quem vive na guerra a paz nunca existiu”, a luta periférica é luta periférica em qualquer lugar (pra lembrar do cruzamento utópico da Av. Racionais MCs com Av. GOG). No raciocínio do libertário griot[2] Gaspar do grupo Záfrica Brasil: antigamente quilombos, hoje periafricania, favela, ocupação, saraus, nos quais muitos cara-pálida na aparência têm tido papel fundamental – sem nunca amenizar a face racista do capital. Mas quem vê só cara não vê evolução.

E por falar em griots periafricanos, como lembrou Liliane Braga aqui no Brasil de Fato (15/12/2006), a Cooperifa é isso: reunião de um “povo lindo e inteligente” e sua Versão Popular da história, evoluindo pra revolucionar todas e todos. E como nessa longa história pós-África (de massacre também na América, Ásia...) a paz nunca existiu mesmo, sempre esteve no sangue e na pele dos verdadeiros guerreiros o remar contra as marés (chamadas de abolição, paz e democracia pelos ricos). Ainda mais depois que a chibata virou o dinheiro e a metralhadora da polícia. E a negação profunda deste negócio é colecionar sabiamente as pedras no caminho, lapidá-las poeticamente para o momento certo do salto da pantera preta-no-branco. Salto que pode significar a verdadeira emergência da maioria (também chamado de “quilombo” desde Zumbi, e de “comunismo” desde Marx). Comumquilombismo ou Quilombunismo, pra lembrar em reverso dos centenários Abdias do Nascimento e Solano Trindade... Não importa ficar disputando entre nós o nome. Do campo à cidade, outra letra do Clã complementa uma proposta a todos: “MST: eu e você, somos um só!”.

E a rapaziada da cidade também já tá dando saltos importantes na produção dos próprios livros, cds, roupas, artes plásticas. Nas letras, as coletâneas “Literatura Periférica” organizadas por Ferréz deram fôlego importante. Muito o quê fazer ainda, porém. Agora novas pistas não faltam: como as Edições Toró, que seguem editando autonomamente livros de escritores periféricos com muita qualidade a preço realmente popular (como a Expressão faz noutro campo), mostrando que um projeto editorial crítico não pode ficar só na carta de intenções - aliás, de forte apelo comercial. No mesmo toró e ímpeto literário, efeitos colaterais, fanzines artesanais e até as capitalizações contraditórias por parte de grandes editoras, ONGs, fundações e outros bancos mais ricos. Acabou de sair a nível nacional pela Global Editora a promissora coleção Literatura Periférica, cujo primeiro livro foi “Colecionador de Pedras” de Sérgio Vaz.

Um apanhado desse potencial estético todo (portanto revolucionário, pois não é arte pela arte) também já pode ser conferido em vídeo. No mínimo dois exemplos fazem parte desse marco, curtas finalizados em 2007: “Panorama – arte na periferia”, de Peu Andrade, o qual como diz o nome repassa várias manifestações tratadas aqui; e “2 meses e 23 minutos”, de Rogério Pixote e Fábio Manzani, que registra o esboço de uma experiência quilombunista vivida por mulheres e crianças numa ocupação do MTST.
E por aí iríamos por outras artes...

Prestes a completar seis anos de efervescência, os artistas periféricos próximos à Cooperifa querem mais. Oitenta e cinco anos depois da Semana de 22, e cerca de quarenta após a explosão da Estética da fome e do Tropicalismo - cujo presente pretendia-se eterno -, convocam-se todos “os verdadeiros” a participar do processo coletivo de construção da I Semana de Arte Moderna da Periferia – Antropofagia Periférica, que se realizará entre 4 e 11 de novembro deste ano. O convite diz o seguinte: “85 anos depois, a versão da periferia sobre a arte produzida no Brasil: Literatura, Teatro, Artes, Dança e Música. Informações nos becos e quebradas”. Quem vai passar incólume?

Danilo Dara é historiador.


[1] MC é o Mestre de Cerimônias do grupo de rap, um dos elementos do hip-hop, aquele que transmite o conhecimento através do canto-falado, da poesia ritmada.

[2] Griots são os guardiões e transmissores orais (canto-falado) das memórias históricas milenares cujas origens remontam à Costa Oeste do continente africano, de onde muitos negros foram seqüestrados para virarem escravos no Brasil.

[3] Encontro mensal de rappers coordenado por Sérgio, onde recitam suas letras entre si.

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