quarta-feira, 6 de agosto de 2008

O Estado de direito no Brasil é uma ficção

Entrevista de Maurício Campos a Danilo Dara
(Jornal Brasil de Fato de 17 a 23/07 de 2008)

A execução do menino João Roberto, de 3 anos, por policiais militares, dia 7 de julho, no Rio de Janeiro (RJ) chama a atenção por pelo menos dois motivos: um deles é o aumento de casos de mortes por “engano”, cometidas pela polícia. O outro é o tratamento dispensado pela imprensa corporativa em relação à violência.

Quando é praticada contra pessoas da classe média e ricos, adota um tom de indignação e de cobrança de explicações e medidas por parte do Poder Público. Já quando as vítimas são pobres, quando não se apóia a repressão, trata-se o caso de maneira sensacionalista e apressa-se por encontrar razões e culpados individuais.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Maurício Campos, da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência afirma que mesmo quando a classe média se torna vítima da violência estatal “a grande imprensa encontra meios de manter o preconceito de classe atuante, ao tratar com ênfase e cobranças diferentes cada caso”. De acordo com Campos, “a criminalização da pobreza se revela mesmo quando as vítimas do Estado não são exatamente pobres”.

Leia a seguir a entrevista.

Brasil de Fato- Como a Rede avalia a diferença de tratamento da grande mídia em relação à violência contra classe média e ricos, comparado ao utilizado na violência cotidiana contra pobres?

Maurício Campos- Sempre dissemos que a violência do Estado tem alvo e métodos bem determinados. O mesmo policial que atira indiscriminadamente, ofende e extorque na favela, em geral tem um comportamento bastante distinto em bairros ricos, e até agora diante da classe média. Contudo, quanto mais se sentem poderosos e estimulados a agir acima da lei, menores são os cuidados que tomam mesmo fora das favelas e periferias. Não adianta muito o secretário (Mariano) Beltrame lembrar à tropa que “um tiro na favela da Coréia é uma coisa, um tiro em Copacabana é outra” (conforme declaração sua logo depois da “mega-operação” naquela favela da Zona Oeste, em outubro de 2007), se a ordem principal é “atire! atire!”
Mas, mesmo quando a classe média também se torna vítima da violência estatal, a grande imprensa encontra meios de manter o preconceito de classe atuante, ao tratar com ênfase e cobranças diferentes cada caso. Quer dizer, a criminalização da pobreza se revela mesmo quando as vítimas do Estado não são exatamente pobres.

Muitos órgãos de imprensa e principalmente representantes do Estado tratam logo de responsabilizar o despreparo e o excesso individual dos policiais como principal razão dos casos absurdos de violência. Trata-se de despreparo e excesso individual ou, ao contrário, de uma alta preparação exatamente para o excesso de violência contra a população, sobretudo a mais pobre?

O “despreparo” da polícia em agir dentro do respeito aos direitos humanos é algo generalizado em toda corporação. Logo, na verdade é um “preparo” de uma tropa brutal e violenta. Isto está hoje em dia muito documentado, através de livros (como o “Elite da Tropa”) ou reportagens que de uma forma ou outra descrevem o real processo de treinamento dos policiais. Desde as situações humilhantes, até os cantos e refrões violentos, tudo leva o policial a se comportar de maneira agressiva e buscando sempre eliminar o “inimigo”, que não tem uma definição muito precisa a não ser morar na favela. É uma preparação para uma guerra suja muita parecida com a que os soldados dos EUA recebem para participar da dita “guerra contra o terror”, com métodos muito semelhantes.

As operações da PF contra banqueiros como Daniel Dantas trouxeram à tona a discussão de que atualmente os ricos no Brasil não desfrutam mais de impunidade, e são tratados como os pobres. Por outro lado, várias vozes da opinião pública só agora se levantam contra a “espetacularização de prisões” e em defesa do direito constitucional à defesa e ao “habeas corpus”, contra a execração pública. Ao mesmo tempo, mais de 50% da população carcerária brasileira espera há muito tempo seu habeas corpus, sem qualquer esperança de julgamento, e via de regra são presos e expostos como troféus diante das câmeras de telejornais. Como você vê essa ambigüidade?

Essa é outra face da visão preconceituosa de classe promovida pela grande imprensa e outros setores formadores da “opinião púbica”. Direitos e respeito pelas garantias individuais só são cobrados tanto quando os atingidos fazem parte da elite econômica e social. Por outro lado, não se fala da absoluta desproporcionalidade entre o grau de violência, prisões e punição quando os possíveis criminosos são pobres ou ricos. Se houvesse um combate de fato à criminalidade organizada, é claro que as operações teriam que se concentrar na parte mais organizada e bem estruturada, que está nas grandes empresas e no aparelho de estado. É nesse “alto crime” que se realizam as operações mais complexas e decisivas da rede criminosa, como a importação em grande quantidade de drogas e armas, a receptação de roubos e a lavagem de dinheiro. Se isso fosse desarticulado, mesmo o “pequeno crime”, o crime desorganizado das favelas e periferias, logo seria atingido sem a necessidade de tiros e mortes. A violência e a brutalidade policial não têm nenhuma função real de combate às redes criminosas, mas servem como meio de controle social e militarização dos conflitos.

Alguns pesquisadores acreditam que o Rio de Janeiro, junto ao Haiti, tem se transformado num verdadeiro laboratório (teórico e prático) de operações militares conjuntas entre forças policiais e do exército para a criminalização e repressão de comunidades pobres. Qual a posição da Rede sobre isso?

Já há algum tempo temos chamado a atenção para o intercâmbio crescente de estratégias, experiências e técnicas entre as forças policiais e militares brasileiras e suas congêneres dos Estados Unidos, Israel e Colômbia. Quer dizer, operações supostamente de “combate ao crime” são equiparadas a operações contra-insurgentes, guerra de baixa intensidade, ocupação de territórios estrangeiros ou “guerra ao terror”. Grupos completamente diferentes, como guerrilheiros islâmicos que abominam álcool e drogas, ou os pequenos traficantes das favelas, são classificadas sem nenhum critério como o mesmo tipo de “inimigos”. O que há de verdade em comum são populações urbanas pobres e potencialmente revoltadas vivendo em áreas densamente povoadas. Logo, trata-se de intercâmbios militares, e não de técnicas policiais.

Tem sido possível lutar pela defesa dos direitos humanos no Brasil sem questionar a própria lógica econômica e política do estado brasileiro e da maneira por meio da qual o capitalismo global tem incentivado a penalização da pobreza, o encarceramento em massa e outras estratégias de controle, sobretudo na periferia?

É possível “despolitizar” a questão? Claro que não. Não é papel dos movimentos sociais em defesa dos direitos humanos apresentar alternativas técnicas de “políticas de segurança”, inclusive porque a questão de fundo não é a melhor maneira de “combater a criminalidade”, como o discurso dominante procura impor. Entretanto, defender intransigentemente o respeito aos direitos individuais e coletivos das populações pobres, sem fazer concessões ao discurso da “segurança pública”, têm hoje, em si mesmo um potencial transformador, porque o capitalismo depende da criminalização da pobreza para manter seu domínio, econômico, político e ideológico.

Fale sobre a idéia do “Tribunal Popular: o Estado Brasileiro no Banco dos Réus”, que está sendo organizado por uma série de movimentos sociais, inclusive a Rede, para dezembro deste ano, exatamente entre os aniversários de 20 anos da “Constituição Cidadã” brasileira (05 de outubro), e os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (10 de dezembro).

Essa proposta surgiu em São Paulo e nós da Rede imediatamente aderimos, assim como outras organizações aqui do Rio. A idéia geral é julgar o Estado Brasileiro por meio das leis internacionais e nacionais que ele mesmo reconhece, face às violações sistemáticas de direitos em quatro grandes áreas: violência contra movimentos e pobres do campo; violência contra a juventude pobre; violência no sistema prisional e violência estatal sob pretexto de segurança pública nas comunidades urbanas pobres. Vamos apresentar casos bem documentados e relacioná-los com outros, proceder aos passos de um julgamento usual (acusação, apresentação de provas, defesa, etc) e chegar a um veredito. Tudo com a presença de observadores internacionais, e pretende-se viabilizar a transmissão em tempo real para várias partes do país. Em minha opinião, isso mostrará como o Estado de Direito no Brasil é uma ficção, e daí a necessidade da organização popular e da solidariedade internacional para mudar de fato esta situação.


O que é a Rede?
A Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência é um movimento social independente do Estado, de empresas, partidos políticos e igrejas. Reúne moradores de favelas e comunidades pobres em geral, sobreviventes e familiares de vítimas da violência policial ou militar; além de militantes populares e de direitos humanos. A Rede atua preservando a autonomia de comunidades, movimentos sociais e indivíduos que lutam contra a violência do Estado e as violações de direitos humanos praticadas por agentes estatais nas comunidades pobres.

Quem é Maurício Campos?
começou a militar no final dos anos 70, no período das greves operárias e da luta pela anistia. Atuou nos movimentos estudantil e popular, principalmente no movimento de moradia e em favelas; sobretudo a partir dos anos 90. Engenheiro mecânico e civil, desde 2000 faz parte da Frente de Luta Popular. Em 2004 passa a integrar a Rede contra a Violência.

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