quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Solano Trindade: vento forte da África

Danilo Dara

“Canto de negro dói, canto de negro mata / canto de negro faz bem e faz mal / negro é como couro de tambor / quanto mais quente, mais toca / quanto mais velho, mais zuada faz!” O palco era Recife-PE, 1908. No dia 24 de julho nascia Solano Trindade. No bairro de São José o sapateiro Manuel Abílio, seu pai, dançava pastoril e bumba-meu-boi com vizinhos. Solano os acompanhava e “aprendia na fonte”. Sua mãe, Emerenciana (ou dona Merença), quituteira e operária, pedia que seu filho lesse para ela novelas, literatura de cordel e poesia romântica. Ali o menino pegava gosto tanto pela palavra cantada quanto pela leitura e escrita, bagagens para o seu futuro caminhar mundo adentro.

Segundo sua filha e herdeira artística, Raquel Kambinda Trindade, a vida retirante de Solano fora marcada por três cidades fortes: Recife na infância; Duque de Caxias-RJ na mocidade; e Embu (das Artes)-SP na maturidade. Pois é justamente esta última que tem sido palco nas últimas semanas das maiores celebrações do centenário de Solano, numa série de eventos iniciada há um ano (noticiada pelo Brasil de Fato). Chegando enfim o aniversário, agora é momento de falar um pouco mais da biografia do grande poeta negro.

Solano - cujo nome, segundo o outro poeta Sérgio Vaz, "vem do latim e significa 'vento do levante', mas há quem interprete como 'vento forte da África'” -, estudou na escola até o equivalente ao 2º grau, e cursou um ano de desenho no Liceu de Artes do Recife. Sua formação desenvolveu-se mais e melhor fora das instituições, nas andanças (coletivas) pelo país, sempre acompanhado por muitos irmãos-artistas. Além da paixão pela poesia cantada e escrita, foi pintor, teatrólogo, cineasta, ator e folclorista. Sua trajetória como poeta-militante iniciou-se, de fato, a partir de 1930, quando começou a compor poemas e ajudou a organizar, em 1934, os I e II Congressos Afro-Brasileiro, respectivamente no Recife e em Salvador-BA. Em 1936 participou da fundação da Frente Negra Pernambucana e do Centro de Cultura Afro-brasileiro, com o objetivo de divulgar os intelectuais e artistas negros. Nunca deixaria o movimento negro, o qual foi fundamental na sua formação como artista e ativista, e pelo qual é até hoje reverenciado.
No ano de 1940 transferiu-se para Belo Horizonte, onde ficou pouco tempo, pois logo depois iria para o Rio Grande do Sul, fixando-se por um curto período na cidade de Pelotas, onde fundou com o poeta Balduíno de Oliveira um grupo de arte popular. Esta foi sua primeira tentativa de criar um “teatro do povo”, o que não se consolidou devido a uma enchente em 1941 que carregaria todo seu material. Incansável, voltou então para Recife, indo logo depois para Duque de Caxias-RJ, onde passaria a organizar festas populares intermináveis e estaria sempre próximo a então capital federal, Rio de Janeiro. Lá conheceu e passou a freqüentar o Café Vermelhinho, onde articulava ações com jovens poetas, intelectuais, artistas de teatro, militantes e jornalistas. Sempre com sua pasta de poesias e outros textos debaixo do braço... No Rio, também filiou-se ao Partido Comunista (movido por palavras bíblicas!), e as reuniões da célula Tiradentes ocorriam na sua casa de fundos.

Casado durante muitos anos com Margarida Trindade, Solano teve com ela quatro filhos de sangue: a primogênita Raquel, Godiva, Liberto e Francisco Solano, formando uma família marcada pela arte, o amor e a persistência libertadora. Exemplo disso fora o episódio de sua prisão, em dezembro de 1944, logo após assinar o “manifesto Mangabeira” e publicar Poemas de uma vida simples - onde se encontra o seu conhecido poema “Trem sujo da Leopoldina“. Durante a perseguição aos comunistas a polícia entrou na sua casa e, apesar de Liberto estar doente e de cama, reviraram o barraco e os colchões à procura de armas. Exemplares de seus livros foram apreendidos. Então Raquel e a mãe, Margarida, percorreram inúmeras cadeias da cidade até encontrá-lo. “Quando sai, Solano parece fortalecido. Embora tenha olhos tristonhos, seu otimismo é contagiante”, remonta o historiador Márcio Barbosa. Saiu da prisão mais determinado a dar continuidade à luta em todos os cantos de sua andança.

Com Abdias do Nascimento (idealizador do Teatro Experimental do Negro), entre outros, fundaram em 1945 o Comitê Democrático Afro-brasileiro, importante experiência para a história do movimento negro, que resgatava criticamente a diáspora africana e valorizava a cultura afro. No Rio de Janeiro também deu início, junto à esposa Margarida e ao sociólogo Edson Carneiro, ao Teatro Popular Brasileiro, sempre buscando conciliar uma pesquisa histórica e cultural bastante séria com a tradução para uma arte verdadeiramente acessível a todos. Dizia Solano: “apesar de tudo que tenho ouvido e lido sobre poesia, resultado das teses e debates nos congressos de poetas e críticos, não me sinto disposto a mudar de linha, de sair do caminho popular de minha poética. Sem querer discutir o valor dos herméticos ‘concretistas’, ‘dadaístas’ etc (eruditos donos da cultura ocidental), prefiro levar ao meu povo uma mensagem, em linguagem simples, em vez de uma mensagem cifrada para um grupo de intelectuais”.

O TPB passou a viajar pelo Brasil divulgando seu trabalho, e seguiu desenvolvendo uma intensa atividade cultural voltada ao resgate das historicamente renegadas raízes afro-nordestinas, além da denúncia do racismo e de outras formas de opressão. Em 1955 chegou a viajar com o TPB para a Polônia e Tchecoslováquia - então comunistas -, onde se apresentaram para multidões. No fim da década, Solano publicou Seis tempos de poesia (1958) e Cantares ao meu povo (1961; reunião de poemas anteriores). Em Praga, o poeta ainda realizara o documentário Brasil Dança. E, como ator, trabalhou nos filmes Agulha no Palheiro, Mistérios da Ilha de Vênus, Santo Milagroso além de, como co-produtor, em Magia Verde.

Depois de visitas constantes, em 1961 já estava morando em São Paulo, quando numa apresentação teve a oportunidade de conhecer o escultor Assis, antigo morador de Embu, que o convidou para conhecer sua cidade, na periferia da região metropolitana. Solano se encantou pelo lugar e o adotou, junto à família e à boa parte do elenco do TPB. Somaram-se a outros guerreiros (como Assis, Sakai, Azteca e Cássio M’boi), transformando a cidade num pólo de cultura e resistência. Poucos anos depois, no entanto, a morte violenta de seu filho Francisco - ao que tudo indica assassinado pela ditadura entre 1964-65 – abalou demais a família, levando-a inclusive a "não querer remexer a história". É nesse período também que Solano chateia-se com o que chamava de “picaretas” e a crescente comercialização na cidade recém-adotada, passando um tempo fora por outros bairros da periferia de São Paulo. Voltaria ao Embu apenas dois anos depois.

Porém, no final da década, em 1969, quando os rumos do país também iam de mal a pior, Solano adoeceu mais gravemente. Depois de passar por várias clínicas e muitas dificuldades (dentre elas um grande assalto, quando perdeu boa parte de suas posses; além da tristeza em razão da morte de sua amada baiana, Lycia, em 1970), acabou sendo cuidado pela filha Raquel e o amigo escultor Vicente de Paulo. Com parte da família no Rio, Solano também foi para lá, onde faleceu numa clínica em Santa Tereza, dia 19 de fevereiro de 1974.

Sua história segue: em 1975, Raquel Trindade lidera a formação do Teatro Popular Solano Trindade, dando continuidade ao núcleo cultural criado e enraizado no Embu pelo pai. Junto com sua família, de sangue e coração, que continua criando e lutando por lá, são exemplos como que escritos por brasas na pele escura de todo negro, de todo oprimido independente de sua cor. Ao completar seu primeiro centenário de vida, familiares, amigos e outros inspirados no poeta seguem a prestar homenagens e a celebrar o mestre pelo Embu e a periferia do mundo afora. Solano hoje dá nome a muitas bibliotecas populares no Brasil, e acaba de ser presenteado com uma nova antologia (Poemas antológicos de Solano Trindade – apresentação de Zenir Campos Reis e ilustrações de Raquel Trindade, Ed. Nova Alexandria). As mulheres e os "homens simples", como gostava de se auto-denominar, agradecem!


Canto dos Palmares
Solano Trindade (1961)

Eu canto aos Palmares
sem inveja de Virgílio, de Homero e de Camões
porque o meu canto é o grito de uma raça
em plena luta pela liberdade!

Há batidos fortes
de bombos e atabaques em pleno sol
Há gemidos nas palmeiras
soprados pelos ventos
Há gritos nas selvas
invadidas pelos fugitivos...

Eu canto aos Palmares
odiando opressores
de todos os povos
de todas as raças
de mão fechada
contra todas as tiranias!

Fecham minha boca
mas deixam abertos os meus olhos
Maltratam meu corpo
minha consciência se purifica
Eu fujo das mãos do maldito senhor!
Meu poema libertador
é cantado por todos, até pelo rio.

Meus irmãos que morreram
muitos filhos deixaram
e todos sabem plantar e manejar arcos
Muitas amadas morreram
mas muitas ficaram vivas,
dispostas a amar
seus ventres crescem e nascem novos seres.

O opressor convoca novas forças
vem de novo ao meu acampamento...
Nova luta.
As palmeiras ficam cheias de flechas,
os rios cheios de sangue,
matam meus irmãos,
matam minhas amadas,
devastam os meus campos,
roubam as nossas reservas;
tudo isto para salvar a civilização e a fé...

Nosso sono é tranqüilo
mas o opressor não dorme,
seu sadismo se multiplica,
o escravagismo é o seu sonho
os inconscientes entram para seu exército...

Nossas plantações estão floridas,
Nossas crianças brincam à luz da lua,
nossos homens batem tambores,
canções pacíficas,
e as mulheres dançam essa música...

O opressor se dirige aos nossos campos,
seus soldados cantam marchas de sangue.
O opressor prepara outra investida,
confabula com ricos e senhores,
e marcha mais forte,
para o meu acampamento!
Mas eu os faço correr...

Ainda sou poeta
meu poema levanta os meus irmãos.
Minhas amadas se preparam para a luta,
os tambores não são mais pacíficos,
até as palmeiras têm amor à liberdade...

Os civilizados têm armas e dinheiro,
mas eu os faço correr...
Meu poema é para os meus irmãos mortos.
Minhas amadas cantam comigo,
enquanto os homens vigiam a terra.

O tempo passa
sem número e calendário,
o opressor volta com outros inconscientes,
com armas e dinheiro,
mas eu os faço correr...

Meu poema libertador é cantado por todos
até pelas crianças e pelo rio.
Meu poema é simples,
como a própria vida.
Nascem flores nas covas de meus mortos
e as mulheres se enfeitam com elas
e fazem perfume com sua essência...

Meus canaviais ficam bonitos,
meus irmãos fazem mel,
minhas amadas fazem doce,
e as crianças lambuzam os seus rostos
e seus vestidos feitos de tecidos de algodão
tirados dos algodoais que nós plantamos.

Não queremos o ouro porque temos a vida!
E o tempo passa, sem número e calendário...
O opressor quer o corpo liberto,
mente ao mundo
e parte para prender-me novamente...

- É preciso salvar a civilização,
Diz o sádico opressor...
Eu ainda sou poeta e canto nas selvas
a grandeza da civilização - a Liberdade!
Minhas amadas cantam comigo,
meus irmãos batem com as mãos,
acompanhando o ritmo da minha voz....

- É preciso salvar a fé,
Diz o tratante opressor...
Eu ainda sou poeta e canto nas matas
a grandeza da fé - a Liberdade...
Minhas amadas cantam comigo,
meus irmãos batem com as mãos,
acompanhando o ritmo da minha voz....

Saravá! Saravá!
repete-se o canto do livramento,
já ninguém segura os meus braços...
Agora sou poeta,
meus irmãos vêm comigo,
eu trabalho, eu planto, eu construo
meus irmãos vêm ter comigo...

Minhas amadas me cercam,
sinto o cheiro do seu corpo,
e cantos místicos sublimam meu espírito!
Minhas amadas dançam,
despertando o desejo em meus irmãos,
somos todos libertos, podemos amar!

Entre as palmeiras nascem
os frutos do amor dos meus irmãos,
nos alimentamos do fruto da terra,
nenhum homem explora outro homem...

E agora ouvimos um grito de guerra,
ao longe divisamos as tochas acesas,
é a civilização sanguinária que se aproxima.
Mas não mataram meu poema.
Mais forte que todas as forças é a Liberdade...

O opressor não pôde fechar minha boca,
nem maltratar meu corpo,
meu poema é cantado através dos séculos,
minha musa esclarece as consciências,
Zumbi foi redimido...

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