quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Democracia entregue no barraco

Entrevista com Paulo Arantes
Por José Arbex Jr. e Danilo Dara


No Rio de Janeiro, como em Bagdá: “Não é preciso remontar à vida nua dos prisioneiros de Guantánamo ou Abu Ghraib. Basta mencionar a recente onda de execuções sumárias no Complexo do Alemão, para saber do que estamos falando. Não por acaso, a ‘ocupação’ de Bagdá segue a mesma lógica do desprezo social e da violência desproporcional na invasão diária das centenas de ‘barracos’ iraquianos”, afirma o filósofo Paulo Arantes. Provocação: ele não gosta de ser qualificado como filósofo, mas como professor de filosofia (aposentado) da Universidade de São Paulo e (efetivo) da Escola Nacional Florestan Fernandes, criada e construída pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Autor de Extinção (Boitempo Editorial), um alarmante livro que reúne ensaios e análises sobre o mundo contemporâneo, Arantes propõe questões urgentes para uma esquerda não raro cega aos desafios contemporâneos, ainda quando bem intencionada e hostil aos esquemas de cooptação tão ao gosto dos “neo-companheiros”. Denuncia um mundo em que a exceção (o poder do soberano de fazer uso da força extrema) tornou-se regra, em que os corpos nus de civis iraquianos, favelados cariocas e sem teto paulistanos são reduzidos à condição de uma massa indiferenciada de carne. Como diz o rap: pra quem vive na guerra, a paz nunca existiu. E a esquerda? Cadê? Bem...

P - A ocupação da reitoria da USP foi saudada como um acontecimento, não só por oxigenar o movimento estudantil, mas por romper com um longo hiato de apatia política. Chegou-se a falar de uma volta de maio de 68 a caminho. Até mesmo a imprensa conservadora concedeu ao evento uma cobertura desproporcional. Enquanto isso, na periferia de São Paulo, mais de 4.000 famílias organizadas pelo MTST participavam de um outro processo de ocupação. No centro da cidade, a tropa de choque não pensou duas vezes para “desocupar” um show dos Racionais. Gostaria que você comentasse este novo capítulo da histórica fratura brasileira, entre seres comuns (homo sacer?), viventes miseráveis e massacráveis, e seres politicamente relevantes (sapiens?).

Paulo Arantes — Se fosse para resumir numa palavra o drama que você está me pedindo para encarar do ângulo da assim chamada, a torto e a direito, fratura social brasileira, aproveitaria sua própria deixa, ao estranhar a “cobertura desproporcional” que a grande mídia deu à ocupação da reitoria da USP — aliás não mais do que um reles puxadinho, como observou um professor muito próximo do movimento. Acho de fato que a marca do momento é a desproporção. No exemplo que você trouxe, salta aos olhos a flagrante e escandalosa assimetria no tratamento dispensado entre as duas ocupações, a uspiana e a dos trabalhadores sem teto em Itapecerica da Serra, que no seu auge chegou a abrigar 10.000 pessoas. Desproporção também no furor punitivo dos bem-pensantes, dentro e fora da universidade: uma gota d’água de desobediência civil num recinto fechado acadêmico, acompanhada por um deus-nos-acuda, do tipo pega-ladrão de outros tempos. Lembro que no levante dos presídios paulistas no ano passado, os mesmos varões sabedores e proprietários se revezaram em palácio exigindo do governador uma rodada exemplar de carandirus. Mais rotineira, mas não menos desproporcional, como você mesmo lembra, a tropa de choque reprimindo um show dos Racionais em plena noite de glamour oficial (Virada Cultural) na praça da Sé. Se valer o registro, um boletim de ocorrência pessoal: pelo fato de ter sustentado a nota da ocupação, esperava como um fato da vida o habitual xingatório ideológico de sempre, e no entanto fui surpreendido sendo tratado de velho, falsificador de diploma, bolsista estelionatário, etc. Um outro repertório, que soa desafinado porque a matriz da velha proporcionalidade entre fato e sanção está mudando — vai ver esta violação do Estatuto do Idoso já é uma manifestação paroquial do novo biopoder hegemônico. Enfim, todo mundo está perdendo a cabeça, a começar por quem não deveria, professores e assemelhados.

P. Por falar em universidades políticas e presos comuns, estamos completando pouco mais de um ano desde os famigerados "alarmes do PCC" e, sobretudo, da polícia, os quais, como se sabe, só entre maio e junho de 2006 deixaram mais de 700 "suspeitos" mortos. Democracia... Por medidas provisórias e preventivas, à imagem e semelhança da "guerra infinita contra o terror" no plano planetário, favelas continuam sendo ocupadas (ou invadidas?) por tempo e corpos indeterminados.

PA – Em escala planetária, o sintoma mais gritante deste desconjuntamento todo se encontra bem visível, como era de se esperar, no efetivamente desproporcional poder militar-punitivo americano: quando a guerra não tem mais fim, sendo difusos seus objetivos e indeterminados seus limites temporais, o princípio da proporcionalidade entre meios e fins, que comandava a antiga racionalidade capitalista da guerra deixou de fazer sentido. Se fôssemos cavar mais um pouco, chegaríamos à desproporcionalidade básica do nosso tempo, matriz do atual despotismo do capital, a desproporção qualitativa, nas palavras de um Marx profético, entre a imensidão da riqueza livre socialmente produzida pela inteligência humana e seu acesso violentamente bloqueado por um processo de valorização capitalista cada vez mais desencarnado. Relembro de passagem que dois pensadores alemães, Oskar Negt e Alexander Kluge, identificaram justamente na proporção entre os termos envolvidos num confronto social a relação constitutiva da política, sem a qual não se formam comunidades emancipadas duradouras. Em contrapartida, o que há de incomensurável no poder soberano meramente instrumental — pensemos no espaço descontrolado em que se exerce a autoridade monetária hoje — nos converte em seres apolíticos, quer dizer, em pessoas sem resposta. Ou por outra, tomadas por respostas desproporcionais, da ordem da gesticulação inócua e truculenta.
Dito isso, voltemos à dissonância realmente inquietante entre as duas ações de despejo. O mais espantoso é que uma não soube da outra, socialmente falando. De resto, só o povo aglutinado pelo MTST foi de fato despejado, tangido pelos PMs de sempre, ludibriados pela encenação dos habituais mediadores de fachada. Enxotados como massa nômade e no limite elimináveis. Na sua perplexidade, você evoca a figura do homo sacer, recolhida no direito romano arcaico pelo filósofo Giorgio Agamben, no intuito de qualificar melhor o limbo jurídico em que vivem hoje as populações impunemente massacráveis que o capital tornou redundantes. Não é preciso remontar à vida nua dos prisioneiros de Guantánamo ou Abu Ghraib. Basta mencionar a recente onda de execuções sumárias no Complexo do Alemão, para saber do que estamos falando — aliás uma outra “ocupação” rigorosamente contemporânea das duas outras em nosso radar. Não por acaso, a “ocupação” de Bagdá segue a mesma lógica do desprezo social e da violência desproporcional na invasão diária das centenas de “barracos” iraquianos. Num caso se alucina a figura abstrata do traficante, no outro, a do insurgente-terrorista, um tipo de pele escura que não fala inglês, espécie de variante do índio morto do general Custer: um iraquiano morto é apenas um iraquiano morto. Na camada intermediária da mesma sociedade global do desprezo, para voltar ao desconforme local, a mesma conjuntura de ilimitação do ódio prossegue através dos sucessivos atos delinqüentes de violência contra pobres praticados por jovens bem-nascidos, como o recente espancamento de uma doméstica na Barra da Tijuca e de um gari na praia de Copacabana. Novamente desproporção, redobrada desta vez, se pensarmos na comoção efêmera e meramente estatística quando se trata de um rifado homo sacer chacinado numa quebrada qualquer.

P - Encarceramento em massa; extermínio concentrado ou difuso dos irrelevantes; e reengenharia genética (eugênica; pós-humana), três biocombustíveis fundamentais de uma fórmula neoimperialista explosiva que em meio à derradeira Crise do Petróleo e das Energias, na periferia do capitalismo se traduz em neofavelização urbana e num neoplantation de terra arrasada... O autor de Extinção acredita, realmente, que esta biogestão primitiva da pobreza "não leva a lugar nenhum", deixando esta massa "estacionada no lugar", ou trata-se de uma solução final de curta duração ao longo e duradouro pós-África que vivemos?

PA - Em contraste com a vida nua do povo escorraçado de Itapecerica, você realça a irônica condição de homo sapiens do povo estudantil da Reitoria, preservado assim do choque punitivo por um sem número de mediações, possivelmente decorrentes desta mesma distinção pelo ethos espiritual, por mais que esses primos pobres e radicais do mundo acadêmico vivessem em imaginação uma intensa e sincera relação fraterna com os espoliados do outro lado do fosso. Não empreguei por acaso o termo espírito. Se descontarmos a retórica superlativa embutida no sapiens a que você recorre por derrisão, substituindo-o por algo menos enfático, porém não menos ideologicamente contundente no corte discriminador, como “capital humano”, e todas suas variantes como senha de um ingresso na sociedade contemporânea do intelecto geral — da qual de resto nossos estudantes precarizados serão invariavelmente rechaçados, daí a revolta preventiva —, creio que nos aproximaremos melhor da desproporção abismal entre as duas ocupações. Pois à vida nua dos “despejáveis” se contrapõe justamente a distinção social indivualizante daqueles que em princípio estão sendo treinados para o desempenho mental elevado. Sem querer simplificar demais os esquemas que o sociólogo Jessé Souza vem elaborando para explicar as tremendas desigualdades de classe no Brasil e o buraco negro da guerra social que está nos engolindo, tudo se passa como se um enorme confronto subordinasse desclassificados sociais que são meros corpos — despejáveis, atropeláveis, espancáveis, torturáveis, chacináveis, etc., mas também economicamente exploráveis como simples corpos na prostituição, no trabalho doméstico, na estafa do corte de cana etc. — à uma casta superior de seres literalmente intocáveis, que por isso mesmo se podem dar ao luxo rotineiro, por exemplo, de atropelar um daqueles corpos como quem passa por cima de um cão sem dono. De um lado, corpos anônimos apenas contados por uma cifra quando morrem, de outro, titulares competitivos de um “capital” portador de reconhecimento social exclusivo, quer dizer, indivíduos cujo corpo por assim dizer se apresenta trespassado pela “alma” de um conhecimento com valor de mercado incorporado. Faz então todo o sentido identificar nas antigas instituições disciplinares sucateadas pelo colapso do processo de valorização capitalista — escolas e hospitais públicos, manufaturas em regime de zona franca, presídios, etc. etc. — apenas carcaças de armazenagem e gestão desses corpos desprezíveis. Sobretudo o último círculo, os presídios, estação terminal do homo sacer brasileiro.

P - Vemos uma relutância da maior parte da chamada esquerda, eterna fã do turismo tele-revolucionário, do Chico Buarque bossa-nova, da Tropicália forever e da “política” por sobrevivência de gabinete (“políticas públicas, Amém!”) –, relutância em encarar o “cortejo de monumentos à verdadeira selvageria” que sempre foi a história dos dominados, e atracar tal realidade pelos chifres. Chifres, por sinal, neomalandramente capitalizados por igrejas evangélicas e pelo verdadeiro Partido - do Crime falsamente Organizado - que restou, os quais neomorro acima têm conseguido prometer respectivamente o Reino dos Céus e a Cidade de Deus na Terra. Por que tanta insistência em não encarar de frente a Justiça neokafkiana das 1, 2, 3, mil Guantánamos? E de forma mais ampla, gradual e decadente: por que a insistência em resignar-se?

PA - Foi no inferno da Ilha Grande, nos anos 70, onde conviveram por um breve período presos políticos e presos comuns, juridicamente amalgamados pelas leis de exceção, que essa fratura abissal entre corpos e mentes esteve a ponto de ser pela primeira vez problematizada num coletivo utópico superador. No entanto, mal despontou no horizonte o aceno da anistia, foi suficiente para dissolver a mistura embrionária: a galeria foi dividida por um muro de alvenaria com um portão de ferro, de um lado os presos políticos, do outro, os “corpos” comuns dos presos proletários, como eles próprios passaram a se auto-denominar. Não deu outra na insurreição da massa carcerária contra os agentes do Estado em maio de 2006: entregues à própria mísera sorte, sob o pretexto filistino de serem manipulados e extorquidos por uma facção criminosa, correu solta outra vez a sempiterna percepção compartilhada por direita e esquerda, de que naquele tumulto se agitavam como sempre meros corpos infames, pedindo quando muito ação pastoral. Resposta política, nem pensar.



José Arbex Jr. é jornalista.
Danilo Dara é historiador e entrega pizza massa-fina a flor dos intelectuais pra ganhar o pão.

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