quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Estratégias globalizadas para a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais

Danilo Dara

Há um padrão comum de criminalização da pobreza e dos movimentos sociais construído e vigorando em todo o mundo.

Este foi o ponto de partida dos relatos durante o seminário internacional sobre “Criminalização da pobreza e dos movimentos sociais na América Latina” – iniciativa do Instituto Rosa Luxemburg e da Rede Social dos Direitos Humanos, entre 18 e 20 de junho na Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema-SP. O encontro reuniu mais de 70 participantes de vários países, entre eles Argentina, Chile, México, Paraguai e Alemanha, além do Brasil.

Durante as discussões pôde-se observar uma série de estratégias comuns de criminalização e repressão ao conjunto mais pobre das sociedades, organizados ou não. Criminalização e repressão dirigidas especialmente contra grupos étnicos específicos (povos originários e afro-descendentes), sem-terra, sem-teto, trabalhadores informais ou desempregados, mulheres e migrantes. Além, obviamente, do alvo prioritário: movimentos populares – visando seu enfraquecimento e, se possível, sua dissolução.

México
Segundo Pablo Romo, do Observatório da Conflitividade Social no México, a criminalização é marcada “pelo desenvolvimento das reformas estruturais que os governos neoliberais iniciaram no final dos anos 1980 e que se implementam agora em sua segunda fase”. Para ele, na relação entre movimentos e Estado “estão se reduzindo as possibilidades de saídas negociadas, pois por um lado o Estado está cada vez menos disposto a fazer concessões substantivas, e justificam esse endurecimento qualificando os movimentos de extra-legais e ilegítimos; de não serem interlocutores válidos que mereçam ser incorporados por meio da pressão a nenhum tipo de negociação-acordo. Por outro lado – acrescenta – um número significativo de movimentos está cada vez menos disposto a ceder frente à decisão vertical ou frente aos danos e destruição a que são submetidos”.

Pablo destaca ainda o papel crucial desempenhado pelos meios de comunicação na legitimação da repressão estatal, citando como exemplo os casos de Oaxaca e Atenco no México em 2007, quando as redes de TV trataram de repetir inúmeras vezes imagens pinçadas de militantes reagindo a provocações policiais, visando com isto legitimar o uso de forças repressivas desproporcionais, tendo como conseqüência centenas de feridos e detidos, e dezenas de mortos.

Chile
E por falar na atuação da grande imprensa corporativa, a situação chilena pós-ditadura é marcada por uma forte influência destes meios. Se por um lado o caráter repressivo do Estado chileno tem raízes de longa data – atingindo seu auge a partir de 1973 e durante os dezessete anos seguintes de ditadura militar liderada por Augusto Pinochet -, por outro lado o cenário “redemocratizado” não parece nada alentador. Segundo o sociólogo Raùl Zarzuri Cortès, professor da Universidade Academia de Humanismo Cristão (UAHC) e pesquisador do Centro de Estudos Sócio-culturais (CESC), atualmente “a criminalização não se reveste necessariamente de tintas tão repressivas tintes, com as características que se manifestaram durante a ditadura, mas o que vemos é que enfrentamos um novo tipo de repressão que denominamos ‘repressão simbólica’ levada a cabo pelos meios de comunicação, principalmente a televisão e a imprensa escrita, que têm contribuído para construir uma visão mirada de certos sujeitos e ações reivindicativas como novos ‘bárbaros’ ou monstros sociais”.

Raùl sustenta que, embora não haja violações flagrantes dos direitos humanos no Chile - “com exceção no caso dos povos mapuche, que sistematicamente têm sido perseguidos mediante leis repressivas herdadas da ditadura” – ainda falta muito o quê se resguardar em relação à liberdade de expressão, em particular pelo alto número de detenções em manifestações de rua "as quais afetam principalmente sujeitos jovens, ainda que não imobilizem novas ações coletivas”.

Argentina
No caso argentino, analisando os desdobramentos desde a crise de 2001 até a relativamente esperançosa ascensão dos Kirchner, Maristella Svampa observou um duplo movimento: durante a crise, “o governo nacional não titubeou em alimentar a estigmatização do protesto – contrapondo a mobilização de rua à exigência de ‘normalidade institucional’”, difundindo uma imagem da “democracia sendo acossada por movimentos sociais”, sobretudo os piqueteiros. Para Svampa, “como resultado, houve o avanço da ‘judicialização’ e da criminalização no tratamento dos conflitos sociais, e a instalação de um forte consenso antipiqueteiro, sustentado e apoiado por amplos setores da opinião pública”.

Um cenário cuja promessa de reversão – apontada pelo governo Kirchner aos setores populares – não só não foi cumprida (salvo uma ou outra sinalização, como no julgamento de alguns militares) como, em muitos casos, intensificado.. Ao mesmo tempo, como aponta Roberto Gargarella, “as políticas penais parecem desenhadas ao calor das demandas conjunturais dos grupos melhor situados. Os quais têm mostrado reiteradamente, nestes últimos anos, sua capacidade para influir no redesenho do Código Penal argentino, bloqueando reformas mais racionais”.

Outro aspecto do que se passa na Argentina diz respeito à mudança histórica de amplitude política na atuação das organizações sociais em defesa dos Direitos Humanos, que durante a ditadura militar no país tiveram papel fundamental para sua superação. No entanto, segundo Claudia Korol (Pañuelos en Rebeldia), teriam limitado seu alcance após a chamada redemocratização, o que coloca a necessidade de re-politizar o tema.

Alemanha
O cenário alarmante, no entanto, não se restringe à periferia do mundo. Os testemunhos sobre as estratégias de criminalização colocadas em prática atualmente na Alemanha, ecoando rumos europeus, são bastante preocupantes.

Conforme apontaram Corinna Genschel, do Comitê para os Direitos Civis e a Democracia, e Peer Stolle, da Associação de Advogados e Advogadas Republicanas da Alemanha, após a queda do muro e a unificação dos aparatos estatais (e policiais) de Leste a Oeste, o grau de controle em relação a qualquer tipo de mobilização social se intensificou muito. Desenvolveu-se um arcabouço jurídico-criminal chamado de “Estado de Segurança Preventiva”, que prevê, entre outros pontos, ampla capacidade de registro de dados dos cidadãos para uso da polícia; intervenções militares rígidas contra reuniões e manifestações políticas; proibição de algumas associações (sobretudo islâmicas - prejulgadas -, e de extrema direita, mas também organizações de esquerda); além de normas penais especiais para a criminalização de movimentos, vinculando-os a associações criminais e terroristas. Uma estratégia geral que, ademais, estaria relacionada à cooperação institucional e policial crescente entre os estados europeus, cujos novos interesses político-comerciais requerem crescente controle das fronteiras externas, e inimigos internos. Não por acaso, foram criadas a Polícia Européia – Europol, e a Procuradoria Geral do Continente – Eurojust.

Padrões comuns
Dentre os padrões de criminalização levantados durante o Seminário, é possível formular uma gradação de estratégias coordenadas para conter e neutralizar as insatisfações crescentes da população pobre em relação às chamadas “sociedades democráticas”. Estratégias civis-militares levadas a cabo em cada país geralmente por grandes proprietários, agentes estatais e grupos monopólicos de comunicação, articulados entre si:

• SILENCIAMENTO e INVISIBILIDADE das demandas populares, buscando-se consumar a sensação generalizada de impotência entre os mais pobres; • quando não é possível silenciar as reivindicações, passa-se à ESTIGMATIZAÇÃO dos seus sujeitos sociais, através da manipulação da notícia, no sentido de legitimar os setores e classes dominantes e seus padrões de “boa-conduta”, servindo ao controle do comportamento social.

• MONITORAMENTO é outra estratégia fundamental, cada vez mais avançada tecnológica e juridicamente – implicando quebra de direitos civis, invasão de privacidade, incremento de bancos de dados, buscas e apreensões noturnas etc. Como parte do monitoramento tenta-se também dividir as organizações populares para enfraquecê-las, via COOPTAÇÃO de militantes, INFILTRAÇÃO de disputas internas e, se possível, a DISPERSÃO territorial dos organizados (demissões em massa, despejos, etc.).

• CRIMINALIZAÇÃO – em geral, forjada por falsas notícias e informações. Trata-se do passo seguinte, quando as demandas resistem aos primeiros obstáculos e passam a ser exigidas mais incisivamente, sobretudo se manifestam por meio da mobilização social e se afetam grandes interesses do capital.

• Criminalização que visa justificar e legitimar a próxima etapa, a REPRESSÃO FÍSICA, seja contra protestos sociais, seja aleatoriamente de modo a intimidar (ou prevenir) qualquer reação popular – de preferência uma combinação das duas formas, a repressão concentrada e a difusa.

• caso todas as estratégias anteriores não dêem conta do inimigo, desemboca-se em um patamar repressivo superior da criminalização, também respaldado por novas REFORMULAÇÕES JURÍDICAS emergenciais que fundamentam a suspensão de todo e qualquer direito inconveniente aos fins repressivos: a JUDICIALIZAÇÃO dos supostos criminosos, DETENÇÕES em série, banalização da TORTURA, e ENCARCERAMENTO sistemático, chegando, em muitos casos, ao EXTERMÍNIO pontual e/ou massivo dos “suspeitos”.

Como resultado dessa permanente e meticulosa agressão contra direitos básicos, desencadeia-se uma ilimitada espiral repressiva. A escalada repressiva gera mais revolta, novamente tornada invisível e silenciada pelos meios de comunicação, realimentando assim o ciclo de violência. Geralmente, quando casos escandalosos escapam do controle dos agentes de contenção social e da informação, e se tornam conhecidos da opinião pública, o discurso dos agentes do Estado – corroborados pela grande mídia comercial – assenta-se nos chavões do senso comum, tipo “não há outra alternativa” ou “fomos obrigados a agir desta maneira”, sendo impossível evitar os “acidentes” e “excessos” cada vez mais recorrentes. Sempre “males menores” em relação ao objetivo supostamente inconteste das operações. Tampouco possível responsabilizar os verdadeiros culpados por esta escalada repressiva.

Brasil
Graças à escalada compulsiva desencadeada por tais operações, continuarão a proliferar em muitos países “dossiês confidenciais”, elaborados exatamente para vazar no “momento oportuno”, como o do Ministério Público gaúcho contra o MST.

Nos diversos países presentes ao Seminário, como aqui, tais dossiês são elaborados em nome da defesa dos “estados democráticos de direito” e da “segurança nacional e internacional”. Se há quarenta anos, civis-militares suspendiam formalmente uma série de direitos para efetivamente intensificar a repressão, atualmente, agentes do Estado intensificam a repressão em defesa dos direitos formais democráticos, na prática suspensos – embora não se dêem sequer ao trabalho de alterar os argumentos reacionários que já moviam os formuladores, no Brasil, dos Atos Institucionais. Isso tudo, como sempre, numa orquestração promíscua envolvendo grandes proprietários, representantes do Estado e grandes grupos de comunicação, além de quase sempre (acrescentaríamos) envolvendo sociedades criminosas como os esquadrões da morte dos anos 1960-1970, e até mesmo gangues do tráfico de drogas, armas e grupos de extermínio, como aconteceu recentemente no caso do Morro da Providência, no Rio de Janeiro. É nesse universo que se enquadram as recentes operações civis-militares-midiáticas do Rio Grande do Sul; a chacina dos três jovens do morro da Providência; a operação desencadeada pelos arrozeiros de Roraima, em parceria com o comandante militar da Região, general Augusto Heleno Pereira contra os índios da Reserva Raposa Serra do Sol, e até mesmo a invasão do território equatoriano pelas forças militares do regime narco-paramilitar da Colômbia, com apoio dos EUA.

Resumindo, mais do mesmo modelo comum à maioria dos países afetados pela longa maré neoliberal, na repressão contra suas diversas lutas recentes. Ou ainda, como preferiria dizer o francês Guy Debord, a passagem ao capitalismo "espetacular integrado".

Enfim, é bom nos prepararmos para o que vem por aí ou, pelo menos, para o que tentarão fazer daqui por diante. Por mais absurdo que pareça, tudo isto ainda é o começo.

Elementos do (anti)terrorismo
Um sistema social e um Estado que produzem o terror por meio de suas próprias leis e seus próprios agentes, necessitam sempre forjar um “inimigo público comum” para expiar a crescente insatisfação social, e para prevenir o aumento da revolta da sociedade contra sua própria forma catastrófica de funcionamento.

Como na obra “1984”, de George Orwell, é sempre preciso forjar um “Outro”, abominável... Não por acaso, o qualificativo encontrado por esse sistema para colar à imagem do seu “inimigo público número um” seja justamente o de “terrorista”, cuja construção, em regra – seja aqui ou em escala global – fundamenta-se na mentira. É exatamente a mesma inversão feita no Iraque, por exemplo, quando cidadãos daquele país, que resistem a décadas de invasão militar e genocídio, são chamados de “insurgentes” ou “rebeldes”, e sobre-criminalizados por tentarem precariamente resistir ao terror promovido pelos chamados “exércitos libertadores” do Ocidente.
É exatamente esse processo o que estão tentando desenvolver neste momento, de maneira desabusada, com relação ao MST, ao exigirem judicial e policialmente sua aniquilação. Não duvidemos que, daqui a pouco, os sem-terra serão também responsabilizados por crimes ambientais contra a humanidade, por serem dos principais protagonistas na defesa da Amazônia e de um modelo de desenvolvimento ecológico-social nas terras brasileiras. Terras pelas quais lutam, combatendo o agronegócio, que as monopoliza e devasta.

Mais que a propriedade das terras essas empresas contam ainda com agentes incrustados nas várias instâncias do aparelho de Estado (legislativos, judiciários e executivos – nas esferas municipais, estaduais e nacional –, forças armadas, polícias, etc) que o manipulam e tentam formatá-lo cada vez mais como uma ferramenta exclusivamente adequada à realização dos seus interesses. Ao lado disto, os grandes meios de comunicação comercial, mais que objetivos estratégicos comuns que comungam com o agronegócio (e por isto mesmo) são também financiados por essas empresas.

No caso do Rio Grande do Sul, neste momento, a orquestração contra o MST é exemplar: em nome da defesa da “ordem democrática”, do “Estado democrático de direito”, o Ministério Público local investe-se de poderes que a Constituição em vigor não lhe garante, organizando um plano secreto numa conspiração no interior do próprio aparelho do Estado, pela qual estigmatiza os sem-terra enquanto terroristas; a governadora (tucana) Yeda Crusius, nomeia comandante da sua Brigada Militar o coronel Paulo Roberto Mendes que dissemina a repressão e o terror contra o MST (e outros movimentos), como se as medidas ordenadas pelo Ministério Público local pudessem ter inconteste valor legal; por fim, no momento em que interessa a essa “santa aliança” – principalmente, em termos imediatos, de modo a criar uma cortina de fumaça para esconder a corrupção liderada pela chefa do Executivo local –, socorre-lhes a grande mídia comercial local (e nacional), através da qual fazem vazar e ecoar as decisões e orientações contidas no documento secreto – em vigor e prática já ao menos há sete meses – elaborado por unanimidade por membros do Conselho Superior do Ministério Público gaúcho. Quanto à contumaz promiscuidade desses encaminhamentos com organizações criminosas ilegais, basta lembrarmos as regulares investidas de capangas e milícias paramilitares contra os acampamentos naquele Estado.

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