quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Família Trindade: 100 anos Solano Amores

Dona Raquel Trindade fala sobre o centenário do nascimento de seu pai, o grande poeta negro comunista e libertário Solano Trindade, e a continuidade do trabalho artístico coletivo germinado em Recife no início do século passado, espraiado pelo Brasil e mundo desde Duque de Caxias-RJ e do Embu de todos os cantos.

Danilo Dara
Marcelo Tomé


“Eita negro! Quem foi que disse, que a gente não é gente? Quem foi esse demente, se tem olhos não vê...”. Conversar com Raquel Trindade (a Kambinda) é sempre uma honra e um desafio, pela densidade de história, espiritualidade e sabedoria que ela traz consigo em cada palavra, em cada gesto. Além de ser filha de quem é e uma das principais herdeiras artísticas do grande poeta negro comunista Solano Trindade. Para se ter uma idéia da responsabilidade, no longínquo mesmo ano de 1944, duas grandes figuras já escreviam algumas poucas e boas palavras sobre Solano. Para Drummond: “a leitura de seus versos deu-me confiança no Poeta que é capaz de escrever ‘Poema do homem’ e ‘O canto dos Palmares’. Há nesses versos uma força natural e uma voz individual, rica e ardente, que se confunde com a voz coletiva”. Para Abdias do Nascimento, fundador do Teatro Experimental do Negro e um dos protagonistas da Frente Negra Brasileira: “Solano Trindade é o brado da raça, o maior Poeta Negro do Brasil contemporâneo. Porque Solano Trindade não se encerrou na torre de marfim da arte pura e tampouco escreveu poesia negra com linguagem de ‘negro-branco’, desses que se envergonham de abordar o típico das gafieiras e das macumbas como legítimas expressões do anseio estético e da misteriosa espiritualidade negra. Ele é Negro, sente como Negro, e como tal cantou as dores, as alegrias e as aspirações libertárias do afro-brasileiro.”

Pois é: para o ano Solano completará seu centenário de nascimento. E as celebrações já começaram dias 21 e 22 de julho, na sua Embu das Artes, com uma reunião poderosa de grupos afro-populares de música, dança e poesia. Não pararão tão cedo, porque toda a imensa família Trindade de sangue e coração promete um 2008 cheio de festa e reflexão sobre a vida e obra do poeta. As iniciativas começam a pipocar (como o documentário “Imagens de uma vida simples”, feito pelos grupos periféricos NCA e Cia. Sansacroma), e o calendário a se preencher. Como ele gostava: sem dia nem hora pra terminar. Com a palavra agora Dna Raquel Trindade, sua herdeira artística. Num poema dedicado a ela, Solano já escrevia: “estou conservado no ritmo de meu povo / me tornei cantiga determinadamente / e nunca terei tempo de morrer”.

Dna. Raquel, fale um pouco de sua infância e da principal lembrança deixada por seu pai.
Tenho muitas boas lembranças de papai. Primeiro o quanto ele ficava assustado de ver outros pais batendo nas suas crianças. Dizia que ainda realizaria seu sonho de ver os direitos das crianças cumpridos. Teve até um dia em que ele fingiu me bater, e falava pra eu gritar e chorar pra brincar com o povo lá fora, que tinha tanto esse costume. Depois a preocupação que ele tinha com minha formação: a gente morava em Duque de Caxias e ele levava a gente pra ver a Orquestra Afro-Brasileira do Abigail Moura, o Teatro Experimental do Negro de Abdias do Nascimento, o Balé Afro de Mercedes Batista. Mas também íamos muito ao centro do Rio, na Pinacoteca, Belas Artes e no Teatro Municipal assistir ópera e música clássica. Ele queria que eu vivesse e conhecesse bem a cultura popular, mas também a ocidental e erudita. Dizia que não podia criticar nada sem conhecer. Papai falava: “trate de aprender porque o quê tá na mente é difícil de ser roubado, e eu não vou te deixar nada material”.

E como foi a chegada da família ao Rio em 1942?
Papai teve três cidades fortes em sua vida: Recife, Duque de Caxias e Embu das Artes. Papai chegou antes ao rio, e mamãe sabia que ele freqüentava muito o bar Vermelhinho (que era ponto de encontro de artistas e intelectuais de esquerda), então chegamos ao porto e ela foi ao bar. Grande Otelo deu o recado a papai, que foi nos buscar, e os amigos próximos cotizaram um aluguel de uma casa de fundos na Gamboa para nossa família. No Rio papai conseguiu realizar alguns sonhos como a criação do Teatro Popular Brasileiro (junto a minha mãe Margarida da Trindade e o sociólogo Edson Carneiro). Minha mãe ensinava as danças, e tinha também a Joana Martins, uma excelente secretária. Era um teatro feito por operários, empregadas domésticas, estudantes e comerciários, que se apresentava muito nas ruas, universidades, fez muita apresentação com a UNE.

E como Solano pensava essa relação entre arte e política?
Em Recife, junto ao escritor José Vicente de Lima e Barros Mulato em 1936, papai já tinha fundado a Frente Negra Pernambucana. No Rio filiou-se ao Partido Comunista, e as reuniões da célula Tiradentes eram em nossa pequena casa em Duque de Caxias. Papai nunca deixou de ser socialista e só deixou o Partidão, depois de muito tempo quando já estava em São Paulo, por duas razões: - não achava que o problema do negro era só econômico, mas dava ênfase à questão racial; - e não queria uma arte subordinada apenas às questões políticas, pois sua própria arte já era um exercício de libertação. Não queria pintar só a miséria do negro, mas falar de outras coisas, da parte lúdica.

E quanto a sua prisão em Duque de Caxias, em 1944?
Disseram que ele tinha armas em casa e a justificativa era o poema “Trem sujo da Leopoldina – tem gente com fome” e por ele ter assinado o manifesto Mangabeira. Chegaram à noite, Liberto [filho de Solano nascido às voltas com a guerra] era pequeno e estava com sarampo, entraram os homens armados até os dentes, papai estava só de cueca. Disse: “esperem, deixem eu só colocar uma roupa”. Eles reviraram tudo e não acharam arma nenhuma, papai não era capaz de matar uma mosca. Levaram os livros e a papelada dele, não falaram pra onde ele iria, deixaram ele incomunicável por uns dias. Mamãe foi de prisão em prisão, até que no presídio na Rua da Relação no centro do Rio, um policial negro que trabalhava lá lhe disse: “não diga que eu lhe falei, mas ele está aqui”. Passamos a noite do lado de fora da cadeia, no dia seguinte minha mãe que era uma paraibana braba conseguiu dobrar o delegado e falar com papai. Ele lhe disse: “fica calma Margarida que eu não estou sendo torturado”. Dias depois saiu.

Outra história dura foi a morte de seu irmão Chiquinho, né?
Isso já foi em 1964/1965. Em 64 a polícia foi em casa buscando Francisco Solano Trindade Filho, meu irmão. Encontraram ele empinando pipa. Estavam à procura dos outros 10 do grupo dos 11 do Brizola. Meu irmão disse que eles teriam que procurá-los. Diz que um rapaz disse a ele: “você vai ter que servir o exército não vai? Lá a gente conversa”. Em 1965 mamãe recebeu uma ligação, e ao confirmar que ele tinha ido ao exército, um sujeito disse do outro lado: “sim ele já foi e já morreu” Ela exigiu o corpo, que eles entregaram com um tiro no peito, um livro, dicionário de inglês e 10 cruzeiros. Eram as armas que ele tinha. Minha mãe não quis mexer nessa história, mas depois não podia nem ver homem fardado pela frente que tinha medo.

O trabalho do TPB continuou nas décadas de 1950/60? Como foi a vinda ao Embu?
O trabalho do teatro continuou seguindo seu lema: “pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo na forma de arte”. Seguiu fazendo apresentações pelo país, inclusive uma série na Polônia e Tchecoslováquia. No começo da década de 60 papai conheceu o escultor Assis, que o convidou pra vir pro Embu. Já estavam lá o Sakai, a Azteca e o Cássio M’Boi. Papai veio com todo o elenco do TPB e se apaixonou pelo Embu, sua terceira cidade. Ela começou a atrair muita gente e ficar conhecida no mundo todo. Até que em 1965, chateado com os “picaretas” e a comercialização que começava a aparecer na cidade, Solano foi morar na Vila Sônia e depois no Ferreira (bairros da periferia de São Paulo). Voltaria ao Embu mais duas vezes...

Pouco tempo depois ele morreu. Como foi sua morte e em que condições vocês continuam o trabalho?
Ele morreu no Rio de Janeiro em 1974. Antes disso tinha se adoentado, e sua casa tinha sido toda roubada no Embu. Mas é um mito dizer que ele morreu como indigente, pois na verdade foi bem cuidado e minha mãe e minha irmã Godiva fizeram um enterro decente pra ele, em Jacarepaguá. Em 1975 eu criei o Teatro Popular Solano Trindade, que continua firme até hoje seguindo o mesmo lema: “pesquisar na fonte...”. Seguimos passando os ensinamentos de pessoa a pessoa: são oficinas gratuitas para a população, trabalho com as crianças. Agora falta estrutura para cuidar e recuperar todo acervo dele, divulgar melhor sua obra. Eu também, como papai, estou triste com a cidade, com os políticos... Muita pessoa vem aqui pesquisar a cultura negra e mandam todos pra minha casa, mas não recebo por isso, falta dinheiro pra luz, tão cortando meu telefone... Apesar disso pretendemos fazer um centenário bem forte, meus filhos e netos estão cheios de projetos.

Há em alguns estados o “Salário de Griot” (como no Ceará e Pernambuco), que é uma conquista de pessoas com reconhecida sabedoria popular. Como foram suas experiências com instituições nesse sentido? Você chegou a dar aula um tempo na Unicamp...
Eu cheguei a dar aula na Unicamp, a partir de 1987, por convite de Antônio Nóbrega. Primeiro no Depto. de Dança, depois no de Artes Dramáticas a convite de Celso Nunes. Ministrei cursos sobre Teatro Negro no Brasil, sobre Folclore e Sincretismo Religioso Brasileiro para a Graduação. Como só tinha um negro em toda Graduação, pedi para dar um curso de extensão para funcionários, trabalhadores de fora e outros estudantes. Desse curso se originou o grupo Urucungos, Puítas e Quijenges, que segue vivo independente da universidade. Eu entrei nela como Técnico-Didata, depois fui promovida à Professora de Sabedoria Popular. Aí veio aquela pressão sutil de muitos professores com vários títulos de mestrado, doutorado... Não admitiam... Mas você me perguntou se eu toparia voltar, sim no caso de um curso teórico com apoio prático de alguém do meu grupo de cultura popular, para fazerem as danças etc.

É portanto a favor das cotas?
A favor das cotas pelas necessidades da época. Se não houvesse discriminação não seria. Só que tem um problema: o que eu estudei no primário na década de 1940 está faltando no ginásio de hoje: os professores não conseguem estudar, as crianças passam sem saber, o vestibular é cruel e são poucos os cursinhos populares (tem o Educafro, mas não é suficiente), e a maioria das famílias pobres que precisam da escola pública são negras. Precisa melhorar também a educação pública.

E como a senhora viu a lei 10.639, que obriga a inclusão de aulas sobre cultura afro-brasileira no currículo de todos os anos?
Vejo com bons olhos, mas me preocupa que os professores não conhecem o assunto. E pior que não ensinar é ensinar errado. Eu fico revoltada, por exemplo, quando vejo muita mãe pondo o nome de Dandara em suas filhas, sendo que Elesbão do Carmo Dandara foi um importante líder da Revolta dos Malês na Bahia em 1835, e não uma mulher (de Zumbi) no quilombo dos Palmares. As pessoas pensam que macumba é uma seita secreta, mas na verdade é um instrumento (uma espécie de atabaque pequeno), e macumbeiro é quem o toca. Muitos pensam que Teodoro Sampaio era branco etc.

Acredita que haja religião afro-brasileira, ou para senhora não houve desligamento a ser religado?
Chamar de religião (e não de seitas, essas coisas) é aceitável pelo respeito, mas é uma relação com a natureza, da qual a gente não pode se desligar nunca. Ossanha são as plantas, Ogum os minerais, Yemanja (cujas origens remontam o rio africano Yemoje) é filha de Olokum, que é o mar onde ela deságua.Oxum á a água doce, Nanã os lagos e as águas paradas. Então tudo tem ligação com a natureza, e os orixás são energias da natureza com as quais os homens se relacionam. Eu brincava com papai que se eu soubesse física, talvez eu entendesse mais dos orixás.

E como vê os avanços dessas novas tecnologias de hoje?
O avanço da tecnologia não atrapalha. Só não dá pra gente como eu, do meu tempo, acompanhar. O problema é esse “pseudo-progresso” que tem gerado destruição da natureza. A internet é boa, mas tá cheia de mentiras também (como que papai foi fundador do TEN e morreu como indigente).

Uma curiosidade: por que Raquel Trindade, a Kambinda?
Porque quando eu era jovem e ganhava prêmios por minhas pinturas, falavam que eu ganhava porque era filha de Solano. Aí resolvi assinar Raquel Kambinda. Que é um tipo de negro do sul da África, e uma região de Angola chamada Kabinda. É uma negra velha da umbanda também, que dá bons conselhos. Muito embora eu seja do Candomblé, nação Kêto, filha de Obaluayê e Oyá.


Danilo Siqueira Dara é historiador.
Marcelo Tomé é pintor, dançarino e produtor, além de neto adotivo de Dna. Raquel.

Quem é Raquel Trindade Souza?
Raquel Trindade, a Kambinda, é a filha mais velha do grande poeta negro comunista Solano Trindade. Pintora, dançarina, coreógrafa, grande conhecedora da história e cultura afro-brasileira, é considerada por muitos uma das maiores griots (guardiões do conhecimento) vivas no Brasil. Fundadora do Teatro Popular Solano Trindade e da Nação Kambinda de Maracatu, sempre ministrou cursos e oficinas livres em vários cantos do país, principalmente no Embu das Artes onde segue enraizada. Casou-se oito vezes, amores que lhes deram três filhos (o compositor Vitor da Trindade, a artista culinária Regina Célia e a escritora dançarina Dadá) e sete netos de sangue (dentre os quais o rapper Zinho Trindade e o percussionista Manuel). Adotou pelo menos mais três netos de coração, todos três artistas como o poeta e “secretário” pra todas as horas Marcelo Tomé. Autora de Embu: Aldeia de M’Boy (Noohva América), atualmente ela administra o TPST e seus projetos, além de estar elaborando um novo livro sobre danças de origem bânto chamado “Urucungos, Puítas e Quijenges”, e coordenando as atividades do centenário de Solano. E-mail: tpstrindade@yahoo.com.br .

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